PRIMAVERA NISEANA

Por Flávia Hargreaves
fmhartes@gmail.com

Nise da Silveira

Dia 6 de outubro tive a oportunidade de assistir ao longa metragem “Nise – O Coração da Loucura”, de Roberto Berliner, com Gloria Pires no papel principal, no Festival de Cinema do Rio. No dia 26 de outubro fomos brindados com uma sessão especial do documentário “Olhar de Nise”, de Jorge Oliveira, no Cine Odeon, no Rio de Janeiro. E no apagar das luzes deste outubro niseano, “Nise – O Coração da Loucura” recebe dois prêmios no 28º Festival Internacional de Cinema de Tóquio, melhor filme e melhor atriz. Não poderia deixar de citar a reedição, pela editora Vozes, do livro “Imagens do Inconsciente” de Nise da Silveira, em agosto deste ano.

A história de Nise da Silveira (1905-1999), psiquiatra revolucionária até para os parâmetros atuais, nos impressiona e nos toca profundamente, acredito que pela sua ética, pela  firmeza em suas convicções e pela coragem na luta pelo resgate da dignidade do ser humano em sofrimento e no enfrentamento com a classe medica opondo-se radicalmente aos” avanços” da psiquiatria nos anos 40 com os eletrochoques e procedimentos cirúrgicos como a lobotomia, que o filme retrata.  Contrapondo ao que ela chamava de “tortura” ,Nise traz o respeito, o afeto e a arte.

A palavra “arte” sempre cria calorosas discussões.  Está claro que o interesse de Nise era terapêutico e não artístico, mas uso aqui a palavra “arte” como uma expressão estética pessoal - mais palavras polêmicas “expressão”, “estética” e “pessoal”. O fato é que  sendo o objetivo ou não, o trabalho realizado nos ateliês de pintura e modelagem na seção de terapêutica ocupacional e reabilitação no hospital psiquiátrico de Engenho de Dentro, retratado nos dois filmes, teve em seu início a presença de um artista, Almir Mavignier, mobilizou artistas e críticos, gerou exposições em espaços de arte, e, precisamos encarar que SIM produziu obras de arte, que na minha opinião não devem ser vistas como imagens patológicas. Diante de um desenho de Raphael Domingues (1912-1979), por exemplo, estou diante de uma obra de arte, criada por um artista sensível e profundo. Não vou negar que conhecer a história de Raphael, sua doença, o estado em que se encontrava, etc. , surpreende e comove, mas afinal conhecer a história de vida do artista, não raro trágica, nos afeta.

Tudo isto me faz refletir sobre o papel do artista em um espaço terapêutico. O que ele recebe e o que ele proporciona ao cliente nesta experiência do ateliê terapêutico? Qual o papel do arteterapeuta neste contexto? Porque um ateliê de livre expressão individual é tão difícil de ser assimilado pelos arteterapeutas, mesmo tendo Nise da Silveira como a maior referência no uso terapêutico de atividades expressivas e em leitura de imagens? Perguntas ainda sem resposta...

Pela minha experiência na Casa das Palmeiras [1], onde atuo como monitora no ateliê de desenho e pintura desde maio de 2014, posso confessar que enfrentei dificuldades diante da não interferência, em deixar o processo fluir livremente, espontâneo. Durante muito tempo tive a impressão de que não fazia nada, o que acabava trazendo um certo incômodo e desânimo. Hoje percebo que se você não desistir, aos poucos vai percebendo que o fundamental é exatamente e tão simplesmente “estar ali”, e aos poucos fui entendendo que muito além das imagens produzidas pelos clientes está o afeto e a relação. O afeto catalizador, segundo Nise, que possibilita a abertura desta via de comunicação através das imagens.

Então talvez o grande legado de Nise seja justamente o resgate pelo afeto da humanidade dos outrora chamados alienados. Afeto impossível de dissociar da ética e do respeito ao ser humano e à vida. Talvez por isso mostrar sua história arrebate os corações do outro lado do mundo, e dê ao filme “Nise – O Coração da Loucura”, prêmios dos quais os brasileiros devem se sentir orgulhosos.

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Conheça a Casa das Palmeiras : http://casadaspalmeiras.blogspot.com.br/
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[1] A Casa das Palmeiras foi fundada em 1956, pela psiquiatra Nise da Silveira, com a colaboração da psiquiatra Maria Stela Braga, da artista plástica Belah Paes Leme, da assistente social Ligia Loureiro e da educadora Alzira Lopes Cortes.informações disponíveis no blog: < http://casadaspalmeiras.blogspot.com.br/ > acessado em 01/11/15. 

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texto publicado originalmente em 02/11/2015: http://nao-palavra.blogspot.com.br/


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