RASTROS E RESTOS ME INTERESSAM
MERZ ART DE KURT SCHWITTERS E A ARTETERAPIA
por Flávia Hargreaves
fmhartes@gmail.com
Desde o início de 2013 tenho realizado mini-cursos sobre Dadaísmo e Surrealismo voltados para a Arteterapia,por serem movimentos artísticos que buscam a não racionalização durante o processo criativo. Tenho constatado em minhas turmas algumas situações que coincidem com a experiência de Eliana Moraes em seu trabalho clínico ao aplicar técnicas inspiradas nestes movimentos, em especial a colagem/assemblagem dadaísta: Merz Art de Kurt Schwitters (1887/1948).
O movimento Dadaísta não se refere ao inconsciente, como ocorre no Surrealismo, mas o acessa ao propor a negação do racional e do lógico. Por esta razão suas práticas se mostraram muito ricas para o processo arteterapeutico.
Hans Richter recorda que “o acaso nos instigava como fenômeno intelectual e emocional. Somente mais tarde soube que, simultaneamente, psicólogos, filósofos e cientistas se defrontavam com o mesmo fato inexplicável. (...) O acaso afigurava-se-nos como um processo mágico, através do qual podíamos transpor a barreira da causalidade, da manifestação consciente da vontade, através do qual o ouvido e os olhos interiores se aguçavam, até o aparecimento de novas seqüências de pensamentos e experiências. Para nós, o acaso era aquele ‘inconsciente’ que Freud já descobrira em 1900.”(PASSETI, Dorothea Voegeli).
Ao abrir espaço para o acaso, partindo de um processo cujo centro é o aleatório e o absurdo, deixando o trabalho plástico fluir livremente sem um objetivo, sem uma consigna, sem um tema proposto, o tema e o símbolo surgem espontaneamente. Quando o terapeuta sugere a seu cliente que busque um símbolo para algo como “o feminino”, “o herói”, etc. ele está, em certa medida, constrangendo esta espontaneidade e segundo Jung, os símbolos “não são inventados pelo ego mas, pelo contrário, surgem de modo espontâneo do inconsciente.”(STEIN, Murray. 2012. P. 79).
Mas o que vem a ser Merz Art? Como Eliana Moraes define em seu artigo “O Dadaísmo na pratica da Arteterapia” (http://nao-palavra.blogspot.com.br/) o Merz Art “cria relacionamentos entre as coisas do mundo. Trata-se de uma colagem em forma de coluna/totem, composta de tudo o que, topando-se por acaso sob as vistas ou ao alcance da mão, chamou sua atenção por um instante, ocupou sua vida por algum momento. Coisas recolhidas e combinadas que foram descartadas pela sociedade por não servirem mais, por terem cumprido suas funções. Mas por serem ‘vividas’ comporão no quadro uma relação que não é a lógica de uma função organizada, e sim a trama claramente legível da existência. Ou talvez do inconsciente que, como motivação profunda, determina o fluxo incoerente da vida cotidiana.”
Ao pedir que o cliente/paciente/aluno guarde objetos, papéis, etc. que cruzem o seu caminho em um determinado intervalo de tempo, estamos propondo que se recolham restos do dia-a-dia, que se guardem rastros de um caminho percorrido ao longo deste período. Permitir o acaso e correr o “risco de não chegar a lugar nenhum” são o ponto de partida desta pratica. Porém, é importante destacar que o acaso não domina o processo como um todo. Os itens são colhidos ao acaso mas em um segundo momento, quando a colagem está sendo produzida estamos diante de um processo de elaboração onde se estabelecem relações entre as partes, não buscando um tema/símbolo, mas organizando, dando forma, resignificando, descobrindo-se no processo, na construção absurda, e ao final como uma “mágica” se perceber diante de uma questão, de um tema e de um símbolo que surgiram espontaneamente como um presente do inconsciente.
“Não é o acaso que organiza papéis, bilhetes, cédulas, embalagens, cartões e outras tantas substâncias descartadas: o acaso fez com que eles fossem encontrados por Schwitters e guardados em seu bolso do paletó. Seriam objets trouvés, atualizados não só no conteúdo, mas como substância: de objetos a matérias primas. Com paciência, o exame minucioso dos papéis e outros materiais coletados possibilita descobrir associações imprevistas, sugerindo novos significados ao que já havia sido transformado em lixo. Não só cores e texturas, mas palavras, ou pedaços delas, imagens, recortes, fragmentos que compõem uma poética visual.” (PASSETI, Dorothea Voegeli).
Em minhas aulas utilizei esta técnica com 2 grupos e constatei resultados distintos, porém ambos positivos com relação ao surgimento de um tema de modo espontâneo. No primeiro grupo, constatei a emergência de um tema único, em torno do qual giravam as questões individuais. No segundo, os trabalhos refletiram questões pontuais e objetivas, situações que estavam sendo concluídas/decididas ou em andamento naquele curto período. O que, de certa forma, repete a situação do anterior, já que todo o grupo apresentou o mesmo perfil, embora as questões fossem distintas. Em todos os casos, tanto na minha experiência como na de Eliana Moraes, cada indivíduo chegou a sua questão terapêutica, embora no início do processo nada parecesse fazer sentido e ao final a surpresa, o “símbolo espontâneo, que surgiu da expressão não racionalizada do paciente, ao qual devemos acolher e nos debruçar.” (MORAES, Eliana. 2013).
Para concluir digo SIM, rastros e restos me interessam, porque são os nossos rastros e os nossos restos, são testemunhas e provas do caminho percorrido por mais banais e cotidianos que pareçam ao primeiro olhar. Ao se relacionarem, ao se somarem ou não a outros objetos disponíveis, nos trazem novos significados e deixam de ser aqueles objetos descartáveis e passam a ser matéria prima para uma criação poética e subjetiva.
_______________________________________________________________________________
- O título deste artigo se inspira na música Maior Abandonado de Cazuza, sendo a letra original “raspas e restos me interessam”.
_______________________________________________________________________________
Referências:
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo, SP. Editora Companhia das Letras. 1998, 5º reimpressão.
MORAES, Eliana. Associação Livre em Imagens. In: Não Palavra. Publicado em 14 de outubro de 2013. Disponível em: http://nao-
palavra.blogspot.com.br/2013/10/associacao-livre-em-imagens.html
MORAES, Eliana. O Dadaísmo na prática da Arteterapia. In: Não Palavra. Publicado em 30 de setembro de 2013. Disponível em: http://nao-
palavra.blogspot.com.br/2013/09/o-dadaismo-na-pratica-da-arteterapia.html
PASSETI, Dorothea Voegeli. Colagem: Arte e Antropologia. In: Ponto e Vírgula. revista eletrônica semestral do programa de estudos pós-graduados em ciências sociais da puc-sp. Disponível em: http://www.pucsp.br/ponto-e-virgula/n1/artigos/02-DodiPassetti.htm
STEIN, Murray. JUNG. O Mapa da Alma. São Paulo, SP. Editora Cultrix. 2012, 9º edição.
________________________________________________________________________________
texto publicado originalmente em 16/12/2013: http://nao-palavra.blogspot.com.br/
por Flávia Hargreaves
fmhartes@gmail.com
Kurt Schwitters. Picture of Spatial Growths -
Picture with Two Small Dogs. (1920-39).
Desde o início de 2013 tenho realizado mini-cursos sobre Dadaísmo e Surrealismo voltados para a Arteterapia,por serem movimentos artísticos que buscam a não racionalização durante o processo criativo. Tenho constatado em minhas turmas algumas situações que coincidem com a experiência de Eliana Moraes em seu trabalho clínico ao aplicar técnicas inspiradas nestes movimentos, em especial a colagem/assemblagem dadaísta: Merz Art de Kurt Schwitters (1887/1948).
O movimento Dadaísta não se refere ao inconsciente, como ocorre no Surrealismo, mas o acessa ao propor a negação do racional e do lógico. Por esta razão suas práticas se mostraram muito ricas para o processo arteterapeutico.
Hans Richter recorda que “o acaso nos instigava como fenômeno intelectual e emocional. Somente mais tarde soube que, simultaneamente, psicólogos, filósofos e cientistas se defrontavam com o mesmo fato inexplicável. (...) O acaso afigurava-se-nos como um processo mágico, através do qual podíamos transpor a barreira da causalidade, da manifestação consciente da vontade, através do qual o ouvido e os olhos interiores se aguçavam, até o aparecimento de novas seqüências de pensamentos e experiências. Para nós, o acaso era aquele ‘inconsciente’ que Freud já descobrira em 1900.”(PASSETI, Dorothea Voegeli).
Ao abrir espaço para o acaso, partindo de um processo cujo centro é o aleatório e o absurdo, deixando o trabalho plástico fluir livremente sem um objetivo, sem uma consigna, sem um tema proposto, o tema e o símbolo surgem espontaneamente. Quando o terapeuta sugere a seu cliente que busque um símbolo para algo como “o feminino”, “o herói”, etc. ele está, em certa medida, constrangendo esta espontaneidade e segundo Jung, os símbolos “não são inventados pelo ego mas, pelo contrário, surgem de modo espontâneo do inconsciente.”(STEIN, Murray. 2012. P. 79).
Mas o que vem a ser Merz Art? Como Eliana Moraes define em seu artigo “O Dadaísmo na pratica da Arteterapia” (http://nao-palavra.blogspot.com.br/) o Merz Art “cria relacionamentos entre as coisas do mundo. Trata-se de uma colagem em forma de coluna/totem, composta de tudo o que, topando-se por acaso sob as vistas ou ao alcance da mão, chamou sua atenção por um instante, ocupou sua vida por algum momento. Coisas recolhidas e combinadas que foram descartadas pela sociedade por não servirem mais, por terem cumprido suas funções. Mas por serem ‘vividas’ comporão no quadro uma relação que não é a lógica de uma função organizada, e sim a trama claramente legível da existência. Ou talvez do inconsciente que, como motivação profunda, determina o fluxo incoerente da vida cotidiana.”
Ao pedir que o cliente/paciente/aluno guarde objetos, papéis, etc. que cruzem o seu caminho em um determinado intervalo de tempo, estamos propondo que se recolham restos do dia-a-dia, que se guardem rastros de um caminho percorrido ao longo deste período. Permitir o acaso e correr o “risco de não chegar a lugar nenhum” são o ponto de partida desta pratica. Porém, é importante destacar que o acaso não domina o processo como um todo. Os itens são colhidos ao acaso mas em um segundo momento, quando a colagem está sendo produzida estamos diante de um processo de elaboração onde se estabelecem relações entre as partes, não buscando um tema/símbolo, mas organizando, dando forma, resignificando, descobrindo-se no processo, na construção absurda, e ao final como uma “mágica” se perceber diante de uma questão, de um tema e de um símbolo que surgiram espontaneamente como um presente do inconsciente.
“Não é o acaso que organiza papéis, bilhetes, cédulas, embalagens, cartões e outras tantas substâncias descartadas: o acaso fez com que eles fossem encontrados por Schwitters e guardados em seu bolso do paletó. Seriam objets trouvés, atualizados não só no conteúdo, mas como substância: de objetos a matérias primas. Com paciência, o exame minucioso dos papéis e outros materiais coletados possibilita descobrir associações imprevistas, sugerindo novos significados ao que já havia sido transformado em lixo. Não só cores e texturas, mas palavras, ou pedaços delas, imagens, recortes, fragmentos que compõem uma poética visual.” (PASSETI, Dorothea Voegeli).
Em minhas aulas utilizei esta técnica com 2 grupos e constatei resultados distintos, porém ambos positivos com relação ao surgimento de um tema de modo espontâneo. No primeiro grupo, constatei a emergência de um tema único, em torno do qual giravam as questões individuais. No segundo, os trabalhos refletiram questões pontuais e objetivas, situações que estavam sendo concluídas/decididas ou em andamento naquele curto período. O que, de certa forma, repete a situação do anterior, já que todo o grupo apresentou o mesmo perfil, embora as questões fossem distintas. Em todos os casos, tanto na minha experiência como na de Eliana Moraes, cada indivíduo chegou a sua questão terapêutica, embora no início do processo nada parecesse fazer sentido e ao final a surpresa, o “símbolo espontâneo, que surgiu da expressão não racionalizada do paciente, ao qual devemos acolher e nos debruçar.” (MORAES, Eliana. 2013).
Para concluir digo SIM, rastros e restos me interessam, porque são os nossos rastros e os nossos restos, são testemunhas e provas do caminho percorrido por mais banais e cotidianos que pareçam ao primeiro olhar. Ao se relacionarem, ao se somarem ou não a outros objetos disponíveis, nos trazem novos significados e deixam de ser aqueles objetos descartáveis e passam a ser matéria prima para uma criação poética e subjetiva.
_______________________________________________________________________________
- O título deste artigo se inspira na música Maior Abandonado de Cazuza, sendo a letra original “raspas e restos me interessam”.
_______________________________________________________________________________
Referências:
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo, SP. Editora Companhia das Letras. 1998, 5º reimpressão.
MORAES, Eliana. Associação Livre em Imagens. In: Não Palavra. Publicado em 14 de outubro de 2013. Disponível em: http://nao-
palavra.blogspot.com.br/2013/10/associacao-livre-em-imagens.html
MORAES, Eliana. O Dadaísmo na prática da Arteterapia. In: Não Palavra. Publicado em 30 de setembro de 2013. Disponível em: http://nao-
palavra.blogspot.com.br/2013/09/o-dadaismo-na-pratica-da-arteterapia.html
PASSETI, Dorothea Voegeli. Colagem: Arte e Antropologia. In: Ponto e Vírgula. revista eletrônica semestral do programa de estudos pós-graduados em ciências sociais da puc-sp. Disponível em: http://www.pucsp.br/ponto-e-virgula/n1/artigos/02-DodiPassetti.htm
STEIN, Murray. JUNG. O Mapa da Alma. São Paulo, SP. Editora Cultrix. 2012, 9º edição.
________________________________________________________________________________
texto publicado originalmente em 16/12/2013: http://nao-palavra.blogspot.com.br/
Comentários
Postar um comentário