CUBISMO E A ARTETERAPIA

por Flávia Hargreaves
fmhartes@gmail.com


Picasso, Violino e Uvas, 1912.

Sobre o Cubismo

Não consigo evitar o incômodo ao ouvir a palavra “fragmentação” fazendo referência ao Cubismo (1). E isto é o que parece óbvio para muitas pessoas, dado a frequência com que escuto este termo. Não quero dizer com isto que o termo precisa ser banido, mas sim usado com cuidado, evitando interpretações reducionistas e equivocadas.

Nestas ocasiões sempre me vêm à mente a imagem de um diamante. Minha imagem de um diamante fragmentado é a de uma pedra estilhaçada, que por descuido caiu, quebrou; enquanto que a de um diamante lapidado, traz o seu aspecto multifacetado, que reflete o que está ao seu redor de modo planejado. Bem, vejo o cubismo como um diamante cuidadosamente lapidado, por especialistas da forma. Esta visão torna, para mim, impossível ver o Cubismo como fragmentação. Ele não divide, ele multiplica.

Mas porque escrever sobre o Cubismo num blog sobre Arteterapia? No que este estudo pode auxiliar no espaço terapêutico?

Para começar, pela mudança de perspectiva proposta pelo Cubismo, abandonando o ponto de vista único para uma visão múltipla. Pela exploração cuidadosa do objeto, pela possibilidade de ver simultaneamente suas várias faces.

Convido o leitor a ler textos sobre Arte como se estivesse lendo Psicologia, fazendo um diálogo com as situações com que nos deparamos no setting, substituindo, por exemplo, os termos “artista” por “cliente” e “objeto/modelo/tema” por “questão”, “situação”, etc. Para mim foi um exercício esclarecedor na questão de porquê “Arteterapia” traz o termo “Arte”, o que muitas vezes é questionado.

Cubismo e a perspectiva

“[...] Durante 500 anos, desde o início da Renascença italiana, os artistas tinham sido guiados pelos princípios da perspectiva matemática e científica, de acordo com os quais o artista via seu modelo ou objeto de um único ponto de vista estacionário. Agora, é como se Picasso tivesse andado 180 graus em redor de seu modelo e tivesse sintetizado suas sucessivas impressões numa única imagem. O rompimento com a perspectiva tradicional resultaria, nos anos seguintes, no que os críticos da época chamaram visão ‘simultânea’ – a fusão de várias vistas de uma figura ou objeto numa mesma imagem. [...]  A rejeição da perspectiva  tradicional, com ponto de vista único, era tão essencial para a materialização das sensações espaciais que Braque desejou transmitir quanto para o desejo de Picasso em transmitir uma multiplicidade de informações em cada objeto pintado.” (GOLDING, 1991, p. 40-43).

O olhar Analítico e Sintético

Sempre tive dificuldade com esta divisão. As definições de cubismo analítico e sintético não respondiam às minhas indagações, nem mesmo a observação das obras que embora claramente diferentes não pareciam se encaixar tão bem nas definições, para mim deixavam a sensação de “faltar algo”. Finalmente, ao ler o artigo de Golding (1991), tudo me pareceu mais claro. Era uma questão de procedimentos.

Segundo Juan Gris (apud. GOLDING, 1991, p. 51) o modo analítico seria partir de uma ideia preconcebida do tema e de uma imagem naturalista e conscientemente analisá-la e reduzi-la de acordo com os princípios da visão simultânea. Devemos entender aqui “redução” no seu aspecto formal.

O processo Analítico parte da representação do objeto, da figura, para a exploração de suas vistas múltiplas, que embora pareça caminhar para a abstração mantêm-se figurativa, mantendo “chaves”, “pistas” para que possamos recompor a figura mentalmente. De qualquer modo, creio ser possível pensar em um olhar abstrato sobre a figura, geometrizando e multifacetando o objeto. Se por um lado nos afasta do objeto, que muitas vezes o confunde com o fundo, com os espaços vazios, por outro nos aproxima pois amplia nossa consciência e conhecimento do mesmo.

Gosto de pensar na ideia de “desdobramento” do objeto, e de “andar ao redor”. Diante de um objeto cotidiano, que “conheço”, percebo que “não o conheço” e “não o compreendo” antes de desdobrá-lo e andar ao redor.

Quantas vezes em terapia, estamos diante de um tema conhecido, de um discurso conhecido, que na verdade mantêm muitas faces ocultas, inconscientes, que se revelam quando observados de novos ângulos. Este seria, a meu ver, o procedimento analítico da arte transposto para o setting arteterapêutico.


Picasso, 1913.

O procedimento sintético, seria o inverso. Parte do abstrato para a representação, para a figura. Parte do que eu ainda não sei, vou buscar nas formas abstratas uma figura/objeto/tema. No cubismo este processo teve forte influência das colagens, os “papiers collés”.  Segundo Juan Gris (apud. GOLDING, 1991, p.52), “[...] quando as formas abstratas se tornam objetos, elas são de certo modo, particularizadas e [...] ficam mais poderosas [...].”

Em Arteterapia nos deparamos com frequência com este procedimento. A partir de manchas, de formas abstratas, recortes, etc., quando ainda não estamos diante de uma figura clara, de um tema, de uma questão,de um símbolo, ... tudo, a princípio parece indefinido, desconhecido e, aos poucos, uma figura se impõe, ou damos um nome à mancha, a particularizamos.

O Cubismo é UM entre os muitos movimentos da História da Arte que podem auxiliar o arteterapeuta no aprofundamento da sua percepção e compreensão das imagens produzidas em terapia. Seja qual for o período da História da Arte estudado, suas obras estarão sempre se referindo a um momento do desenvolvimento da humanidade, a um lugar, a um tempo, e nós estaremos aqui, hoje dialogando com estas imagens e reconhecendo em nós o reflexo destes momentos, destes muitos homens ao longo da história.

Espero que esta leitura desperte o interesse pelo estudo da Arte em Arteterapia, não pela busca de receitas, mas pelo aprofundamento e pela riqueza que nos oferece.

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(1) Movimento da Arte Moderna do início do século XX, tendo como pioneiros Pablo Picasso (1881-1973) e Georges Braque (1882-1963). Destaque para Juan Gris (1887-1927). Forte influência de Cézanne (1839-1906).
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Referências:
GOLDING, John. Cubismo.  In : STANGOS, Nikos (org.). Conceitos de Arte Moderna. 2 ed. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1991, p. 38-57
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publicado originalmente em 07/09/2015: http://nao-palavra.blogspot.com.br/

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