PENSANDO SOBRE A COLAGEM NA ARTE E NA ARTETERAPIA
por Flávia Hargreaves
fmhartes@gmail.com
A colagem é uma técnica/linguagem muito utilizada em Arteterapia, e é, com frequência, um dos primeiros trabalhos sugeridos no setting por ser considerado mais “seguro” do que a pintura, por exemplo. Quem já passou pela Arteterapia como cliente já deve ter se deparado com a sugestão de criar uma “colagem de apresentação”. Nada contra, nem a favor ... o texto que se segue é apenas uma reflexão, com mais perguntas que respostas.
Para começarmos a pensar sobre a Colagem e a Arteterapia, é preciso entender que esta ingressa na História da Arte na Arte Moderna, sendo utilizada até os dias de hoje, com técnicas, abordagens e intenções múltiplas. Como a História da Arte é sempre o meu ponto de partida para pensar as técnicas plásticas, sugiro ao leitor um breve passeio pelas obras de Matisse, Picasso, Braque, Juan Gris, Ernst, Schwitters e Arp, e dos poetas Jorge de Lima e Ferreira Gullar. Neste breve texto citarei apenas alguns, mas fica a dica...
Juan Gris, artista cubista, “tal como Braque, disse ter sido atraído para a colagem por causa do sentimento de certeza que lhe proporcionava. [...] Braque se refere aos fragmentos de papel que, mais tarde, foram incorporados aos desenhos como suas ‘certezas’.” (GOLDING, p.46-52). Mais uma vez nos deparamos com o sentido de “segurança” da técnica.
Podemos pensar também sobre a questão de se estar trabalhando com “algo que já existe”, “fora”, ou seja, imagens de revista, papéis coloridos, que não irão exigir do cliente habilidades de desenho, pintura, conhecimento de mistura de tintas, ou ter que “tirar”as imagens de “dentro”.
Yves Tanguy, artista surrealista, fala da pintura e do desenho com uma abordagem interessante, dizendo que a pintura traz mais “surpresas”. Neste caso, ele também se refere à pintura como “menos segura”. Podemos refletir sobre isso ... mas dificilmente encontraremos respostas definitivas. Cada artista e cada cliente irá lidar com os materiais e as técnicas de arte de modos particulares. O que para um parece assustador, para outro se mostra um prazer. Por exemplo, enquanto uma pessoa se sente confortável em buscar imagens prontas e recriá-las numa colagem, para outra esta pode se mostrar uma tarefa angustiante, buscando nas revistas ou caixas de recortes a imagem que já tem em mente, preferiria, talvez, criá-la a partir da sua imaginação.
E, se o cliente gostar tanto de colagem e passar anos em terapia explorando uma única linguagem? Ele estaria limitado? Congelado? Defensivo? Ou simplesmente encontrou a sua expressão? Deveríamos sugerir que "Rodin virasse pintor ou Monet escultor?" [1] Será que podemos fazer esta analogia entre artistas e não-artistas? Eu arriscaria que, neste aspecto, sim.
Também podemos levar em consideração o caso do cliente ser alérgico a tintas ou ter algum impedimento para pintar. Tenho uma amiga que passou por isso, pintou durante décadas e veio uma alergia que a impediu de continuar. Infelizmente não fez como Matisse, que em 1939, recorreu à colagem fazendo recortes com catálogos de tinta. Posteriormente passou a usar papéis pintados com guache, usando a tesoura como lápis ou pincel. Matisse diz: “Cortar diretamente na cor faz-me lembrar o trabalho de escultores em pedra.”
Hans Arp, artista dadaísta, e Ferreira Gullar, poeta e artista diletante, passam por uma experiência semelhante no que diz respeito à colagem e ao acaso na criação. Em episódio frequentemente citado, Arp insatisfeito com um desenho rasga-o em pedaços que caem no chão e se surpreende com a expressão da organização “acidental” e aceita o acaso. Gullar muda seu processo de colagem, que fazia a partir de um desenho prévio, a partir de um “acidente” com o gato que, ao passar, desarrumou seus recortes. Passou a criar jogando os recortes para cima e aceitando o acaso na criação, como Arp. Este processo também deu origem às suas colagens em relevo.
Ernst, artista surrealista, já traz um outra abordagem da colagem. Diz: “a técnica da colagem é a exploração sistemática do encontro casual ou artificialmente provocado de duas ou mais realidades estranhas entre si sobre um plano aparentemente inadequado, e um cintilar de poesia que resulta da aproximação dessas realidades.” [...] e continua, “fracionar e rejuntar, como faz a colagem, não repõe a unidade quebrada. Ela não pasteuriza nem pacifica. Não tem vocação democrática se isto for entendido como união de todas as diferenças. Há diferenças que não cabem em determinadas formas, mas cabem em outras.” ((Richter, 1993. P. 63).
Acredito que a segurança na colagem seja relativa e que toda a expressão plástica nos reserva grandes surpresas. E talvez a técnica deva ser escolhida pelo cliente desde o primeiro contato, para onde o seu desejo aponta. Mas como coloquei no início deste texto, não tenho respostas, mas “uma colagem” de pensamentos ainda em construção e, claro, um pequeno recorte diante de um tema imenso.
E pra você, o que é colagem?
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[1] comunicação verbal de Maddi Damian Jr., dia 19 de setembro de 2015, durante aula da pós-graduação Arteterapia e Processos de Criação, Universidade Veiga de Almeida, RJ.
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Referências:
ESSERS, Volkmar. Matisse. Editora Benedikt Taschen, 1993.
GOLDING, John. Cubismo. In : STANGOS, Nikos (org.). Conceitos de Arte Moderna. 2 ed. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1991, p. 38-57
PASSETI, Dorothea Voegeli. Colagem: arte e antropologia. Dispoinível em: http://www.pucsp.br/ponto-e-virgula/n1/artigos/02-DodiPassetti.htm
TEIXEIRA, Rafael. Colagens acadêmicas. Veja Rio. 19.11.2014.
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texto publicado originalmente em 28/09/2015: http://nao-palavra.blogspot.com.br/
fmhartes@gmail.com
Henri Matisse, 1953. Guache sobre papel recortado, colado sobre papel montado em tela.
A colagem é uma técnica/linguagem muito utilizada em Arteterapia, e é, com frequência, um dos primeiros trabalhos sugeridos no setting por ser considerado mais “seguro” do que a pintura, por exemplo. Quem já passou pela Arteterapia como cliente já deve ter se deparado com a sugestão de criar uma “colagem de apresentação”. Nada contra, nem a favor ... o texto que se segue é apenas uma reflexão, com mais perguntas que respostas.
Para começarmos a pensar sobre a Colagem e a Arteterapia, é preciso entender que esta ingressa na História da Arte na Arte Moderna, sendo utilizada até os dias de hoje, com técnicas, abordagens e intenções múltiplas. Como a História da Arte é sempre o meu ponto de partida para pensar as técnicas plásticas, sugiro ao leitor um breve passeio pelas obras de Matisse, Picasso, Braque, Juan Gris, Ernst, Schwitters e Arp, e dos poetas Jorge de Lima e Ferreira Gullar. Neste breve texto citarei apenas alguns, mas fica a dica...
Juan Gris, artista cubista, “tal como Braque, disse ter sido atraído para a colagem por causa do sentimento de certeza que lhe proporcionava. [...] Braque se refere aos fragmentos de papel que, mais tarde, foram incorporados aos desenhos como suas ‘certezas’.” (GOLDING, p.46-52). Mais uma vez nos deparamos com o sentido de “segurança” da técnica.
Podemos pensar também sobre a questão de se estar trabalhando com “algo que já existe”, “fora”, ou seja, imagens de revista, papéis coloridos, que não irão exigir do cliente habilidades de desenho, pintura, conhecimento de mistura de tintas, ou ter que “tirar”as imagens de “dentro”.
Yves Tanguy, artista surrealista, fala da pintura e do desenho com uma abordagem interessante, dizendo que a pintura traz mais “surpresas”. Neste caso, ele também se refere à pintura como “menos segura”. Podemos refletir sobre isso ... mas dificilmente encontraremos respostas definitivas. Cada artista e cada cliente irá lidar com os materiais e as técnicas de arte de modos particulares. O que para um parece assustador, para outro se mostra um prazer. Por exemplo, enquanto uma pessoa se sente confortável em buscar imagens prontas e recriá-las numa colagem, para outra esta pode se mostrar uma tarefa angustiante, buscando nas revistas ou caixas de recortes a imagem que já tem em mente, preferiria, talvez, criá-la a partir da sua imaginação.
E, se o cliente gostar tanto de colagem e passar anos em terapia explorando uma única linguagem? Ele estaria limitado? Congelado? Defensivo? Ou simplesmente encontrou a sua expressão? Deveríamos sugerir que "Rodin virasse pintor ou Monet escultor?" [1] Será que podemos fazer esta analogia entre artistas e não-artistas? Eu arriscaria que, neste aspecto, sim.
Também podemos levar em consideração o caso do cliente ser alérgico a tintas ou ter algum impedimento para pintar. Tenho uma amiga que passou por isso, pintou durante décadas e veio uma alergia que a impediu de continuar. Infelizmente não fez como Matisse, que em 1939, recorreu à colagem fazendo recortes com catálogos de tinta. Posteriormente passou a usar papéis pintados com guache, usando a tesoura como lápis ou pincel. Matisse diz: “Cortar diretamente na cor faz-me lembrar o trabalho de escultores em pedra.”
Hans Arp, artista dadaísta, e Ferreira Gullar, poeta e artista diletante, passam por uma experiência semelhante no que diz respeito à colagem e ao acaso na criação. Em episódio frequentemente citado, Arp insatisfeito com um desenho rasga-o em pedaços que caem no chão e se surpreende com a expressão da organização “acidental” e aceita o acaso. Gullar muda seu processo de colagem, que fazia a partir de um desenho prévio, a partir de um “acidente” com o gato que, ao passar, desarrumou seus recortes. Passou a criar jogando os recortes para cima e aceitando o acaso na criação, como Arp. Este processo também deu origem às suas colagens em relevo.
Max Ernst e Hans Arp, 1920. Colagem com fragmentos de fotografia,
guache, lápis, caneta e nanquim sobre papel cartão.
Ernst, artista surrealista, já traz um outra abordagem da colagem. Diz: “a técnica da colagem é a exploração sistemática do encontro casual ou artificialmente provocado de duas ou mais realidades estranhas entre si sobre um plano aparentemente inadequado, e um cintilar de poesia que resulta da aproximação dessas realidades.” [...] e continua, “fracionar e rejuntar, como faz a colagem, não repõe a unidade quebrada. Ela não pasteuriza nem pacifica. Não tem vocação democrática se isto for entendido como união de todas as diferenças. Há diferenças que não cabem em determinadas formas, mas cabem em outras.” ((Richter, 1993. P. 63).
Acredito que a segurança na colagem seja relativa e que toda a expressão plástica nos reserva grandes surpresas. E talvez a técnica deva ser escolhida pelo cliente desde o primeiro contato, para onde o seu desejo aponta. Mas como coloquei no início deste texto, não tenho respostas, mas “uma colagem” de pensamentos ainda em construção e, claro, um pequeno recorte diante de um tema imenso.
E pra você, o que é colagem?
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[1] comunicação verbal de Maddi Damian Jr., dia 19 de setembro de 2015, durante aula da pós-graduação Arteterapia e Processos de Criação, Universidade Veiga de Almeida, RJ.
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Referências:
ESSERS, Volkmar. Matisse. Editora Benedikt Taschen, 1993.
GOLDING, John. Cubismo. In : STANGOS, Nikos (org.). Conceitos de Arte Moderna. 2 ed. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1991, p. 38-57
PASSETI, Dorothea Voegeli. Colagem: arte e antropologia. Dispoinível em: http://www.pucsp.br/ponto-e-virgula/n1/artigos/02-DodiPassetti.htm
TEIXEIRA, Rafael. Colagens acadêmicas. Veja Rio. 19.11.2014.
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texto publicado originalmente em 28/09/2015: http://nao-palavra.blogspot.com.br/
A colagem me ajuda muito em transportar para o papel o que está dentro de mim e que, muitas vezes, eu nem sei definir. Eu, em particular, concordo com a palavra segurança relacionada a colagem, pois é exatamente o que sinto. É um facilitador pra expor o meu íntimo.
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