REFLEXÕES DE UMA QUARENTENA

por Maria Cristina de Resende

Hoje o artes.LOCUS recebe a terapeuta Maria Cristina de Resende, amiga e parceira de longa data, compartilhando conosco suas reflexões diante do emparedamento imposto a todos nós neste período de quarentena.
Boa leitura,
Flávia Hargreaves
Coordenadora do projeto artes.LOCUS


REFLEXÕES DE UMA QUARENTENA 
PELOS OLHOS DE UMA PSICÓLOGA MÃE, MULHER 
E MEMBRO DE UMA COLETIVIDADE.
por Maria Cristina de Resende

"Sun in an Empty Room"(1963). Edward Hopper (1882-1967). Fonte: wikiart.org

Quando Flávia me convidou para escrever um texto sobre este momento que atravessamos, imediatamente pensei em dar minhas contribuições profissionais para os leitores do Blog, entretanto, ao passar das semanas fui experimentando em mim mesma os efeitos do mal falado isolamento social.

Logo no início, assim que divulgada as primeiras medidas de isolamento social, me prontifiquei a fazer um vídeo expondo três pontos importantes para ficarmos atentos neste momento: a dificuldade com as crianças e seus estudos, os idosos e o agravamento de um isolamento que já pudessem estar vivendo mesmo antes da pandemia e dos pacientes em tratamento medicamentoso psiquiátrico e o agravamento do quadro pelo fator estressor do isolamento. Dei entrevistas falando da importância de se reconstruir uma rotina dentro de casa, seja incluindo trabalho ou não, os estudos dos filhos ou não e as tarefas domésticas. Apontei para o fortalecimento do diálogo intrafamiliar diante de um contexto não favorável como conflitos entre pais e filhos, entre o casal e ate mesmo a dissolução de casamentos neste período.

Sabendo de todas as questões que a psicologia poderia me munir para o meu próprio enfrentamento, busquei no início estabelecer minha rotina diária. O trabalho manteve seus horários, os pacientes aderiram ao consultório virtual e a demanda pela leitura, textos e participações com parceiros de trabalho ate aumentaram. Ótimo! O tempo foi preenchido. Os exercícios físicos estavam sendo mantidos, o treinador os enviava pelas redes sociais e compartilhávamos nossa execução felizes pela manutenção da prática e pela inundação de endorfina no corpo. O sono estava bem e a alimentação inabalável.

Mas tudo que é novo se acomoda, como aquele jeans apertado quando novo e que aos poucos se acomoda no corpo e até mesmo afrouxa. Pois assim aconteceu ao longo das semanas.

Aquela certeza de manutenção de rotina diante do emparedamento da própria casa, e da própria mente, afrouxou em quase tudo. A paciência com o homeschooling foi diminuindo na medida em que eu percebia que não dependia somente de mim o esforço para aquele aprendizado tão inovador e improvisado, a dificuldade de gerenciar o isolamento de meus dois filhos adolescentes e seus estudos esbarrava nas minhas próprias dificuldades, mesmo usando as ferramentas que a psicologia me dava. As tarefas domésticas se transformaram em uma atividade enfadonha e não havia desejo diante da competição de quem maratonava mais séries e filmes na TV.


Eleven A.M." (1926). Edward Hopper (1882-1967). Fonte: wikiart.org
"
O trabalho, os estudos da pós e os demais estudos diante da prática clínica mantinham minha atenção para fora, me capturavam e me davam prazer ao longo da semana. Todo o resto estava voltado para dentro. O isolamento social me levou para outro lugar, o isolamento em mim mesma.

Neste processo de total introversão um mundo de questões latentes e outras adormecidas começaram a sacolejar dentro de mim e os finais de semana, sem o objeto de exteriorização que era o trabalho, começaram a ficar difíceis nas ultimas duas semanas, mesmo com as ferramentas que a psicologia me fornecia. Minha análise e uma boa taça vinho tinto eram minhas válvulas de escape.

A ansiedade alterou meu sono, minha alimentação entrou em modo autodestruição e os exercícios já me eram custosos demais. Nenhuma endorfina me parecia mais atraente que um repouso na varanda com meu gato, minhas plantas, o tal vinho e meus pensamentos que muitas vezes me levavam a beira do limite da ansiedade.

Um belo dia parei de me culpar achando que deveria seguir todas as instruções que a psicologia positiva nos fornecia e decidi mergulhar neste botão vermelho e ver ate onde essa implosão me levava. E me levou ao centro de uma questão que muitos de nós, sujeitos urbanos e ocidentais de consumo, nos deparamos de tempos em tempos quando nos questionamos sobre nossa vida. “O que eu estou fazendo para atrapalhar minha autorrealização?” Essa frase, do documentário Yoga, Arquitetura da Paz, me fez pensar sobre essa oportunidade, para alguns de nós, de refletirmos sobre nossas realizações no mundo exterior e o quanto elas estão alinhadas com uma verdade de alma, capaz de edificar as mudanças que queremos construir em nossa vida.

Ao deixar esta pergunta se movimentar dentro de mim algo ficou claro. Podemos organizar nossa rotina da melhor e mais saudável forma para nós, podemos nos relacionar da forma que mais faz sentido para nós, podemos e, até mesmo devemos, buscar compreender nosso modus operandi seja através da psicoterapia e de outras terapias de autoconhecimento, mas quando chega aquele momento em que nada está sob nosso controle e tudo que podemos fazer é aguardar, é nesse momento em que as perguntas surgem fazendo loopings em nossa mente e trazendo à tona tudo que não investimos atenção quando está tudo “normal”. E podemos fazer isso sem culpa, sem cobrança, sem pressa, sem julgamento, apenas acolhendo o que vier, dando atenção ao que vier, sendo carinhosa consigo mesma, pois esse é o momento para isso.

Muitos enfatizam que sairemos dessa quarentena melhores. Tenho dúvidas quanto a isso. Não que eu seja pessimista ou fatalista. Mas a mudança é construída, com calma e persistência, tudo aquilo que muda muito rápido e nos coloca diante do desconhecido nos parece ameaçador demais e como um instinto de sobrevivência egoico tendemos a nos voltar ao conhecido. Para olharmos para frente, para a tal mudança que está evidente que todos querem, é preciso caminhar através deste desconhecido, dar um salto de fé, se permitir mergulhar nessas questões que brotam das profundezas nesse período e digeri-las com amor e consciência. Sem culpa, sem controle, sem medo, pois esses são os sentimentos que farão eu e você adoecerem nesta quarentena.

As ferramentas que a psicologia nos fornece são maravilhosas, mas vivê-las com consciência e verdade há que se ter uma dose de coragem e muita paciência para que possamos construir essa mudança interna e então sairmos dessa pandemia com algo novo a oferecer externamente. 


"Rooms By The Sea" (1951). Edward Hopper (1882-1967). Fonte: wikiart.org


#psicologia
#quarentena
#covid-19
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Maria Cristina de Resende
Formada em Psicologia, Arteterapia, Psicologia Junguiana e Pós-graduanda em Saúde da Mulher e Psicologia.
Dedica sua prática profissional ao atendimento clínico, grupos de estudo e grupos de mulheres com diversas abordagens em saúde e autoconhecimento. 
Terapeuta Floral e estudiosa das medicinas tradicionais como a Ayurveda, Xamanismo e o Sagrado Feminino.
psi.mcresende@gmail.com
@psi.mariacristinaresende

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