EU, O OUTRO E O AVESSO, EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS

por Beatriz Abreu

Hoje, o artes.LOCUS recebe Beatriz Abreu, psicóloga e arteterapeuta, criadora do SEYVA - Psicologia, Arte e Desenvolvimento Humano - SP. 

Nos conhecemos em 2016, antes da criação do LOCUS, quando participou do meu curso sobre materiais artísticos aplicados à Arteterapia e do Ateliê de Artes para Terapêutas. Tive a oportunidade de ver o SEYVA nascer como mais uma voz tratando da Arteterapia e do fazer artístico no processo de autoconhecimento.
Ao ler o texto EU, O OUTRO E O AVESSO, EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS, publicado em 20/03/20 no <https://seivapsi.blogspot.com>, tive o desejo de replicá-lo por aqui, compondo uma série de publicações sobre o período que estamos vivendo, para pensá-los em suas implicações subjetivas coletivas e individuais.

Boa leitura,
Flavia Hargreaves
Coordenadora do projeto artes.LOCUS



EU, O OUTRO E O AVESSO, EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS
por Beatriz Abreu


Salvador Dali (1904-1989). "Cabeça de Mulher", 1927. Fonte: wikiart.org

Fomos todos assolados por um “algo” invisível, com grande poder de presença e de provocar modificações, transformações na vida cotidiana em seus aspectos físico-orgânicos, sociais, psicológicos, éticos, espirituais, em abrangência individual, coletiva nacional e planetária. 

Vírus. Uma partícula acelular, basicamente proteica, que pode infectar organismos vivos. Partículas muito simples e pequenas, na sua maioria com 20-300 nm (nanômetros) de diâmetro, formadas por uma camada proteica envolvendo o material genético. Apenas identificáveis com uso do microscópio eletrônico A palavra vírus vem do latim virus que significa "fluido venenoso ou toxina". 

Uma partícula invisível potente instaura uma situação de isolamento planetário em que todas as nações "infectadas" erguem barreiras - nada entra, nada sai, estabelecendo um estado de reclusão social. Milhões de pessoas veem-se obrigadas ao confinamento em suas casas - sozinhas ou com seus parentes ou familiares.

Desde o início desse processo me perguntei:
- Qual seria o significado desta convocação universal para uma reclusão, separação e distanciamento físico, num contexto em que já existe um intenso chamamento pela virtualização das relações, comunicações, encontros, diversões e prazeres da vida? 

Crianças brincam menos ao ar livre com outras crianças e não conversam com seus pais e vice-versa; homens e mulheres estabelecem o primeiro e quem sabe o único encontro pelos sites de relacionamento; maridos, esposas e amigos também privilegiam as trocas de ideias, projetos, sonhos e conquistas pelas redes virtuais. Tudo analisado e avaliado como uma dissonância social, ameaçadora à saúde biopsicossocial de todos, mesmo entendendo que novos padrões e paradigmas estão se instalando e modificando nossa compreensão de como Ser e Estar em relação, nesse mundo de intensa conectividade.  

Ainda nessa tônica, aceitar diferenças, sob todos os ângulos da existência, tem sido um enorme desafio, necessitando de movimentos globais de afirmações de gênero, etnia, opiniões, enfim, da diversidade, como um todo. Os polos se revelaram e se intensificam, em que um lado não se interessa pelo o que está ocorrendo do outro lado da fronteira ou até, do muro erguido. O desconforto, o inoportuno, o que se apresenta como estranho é afastado num simples ato - DEL. 

Fronteiras, agora bloqueadas, entre nações e indivíduos gerando muros, afetam diferentemente os indivíduos e produzem, de acordo com Gustavo Barcellos, em seu texto – Imaginação das fronteiras, (2017), estados psíquicos distintos. Segundo ele, 


Fronteiras não são muros. Mas fronteiras podem virar muros. Muros são sempre a alucinação das fronteiras, a fronteira levada a seu extremo patologizado. Em outras palavras, o muro é o sofrimento da fronteira, quando ela então experimenta seu veneno, e desconhece sua vocação de união, adentrando, pedaço a pedaço, tijolo por tijolo, o pesadelo da separação, da segregação, da discórdia, quando separação não quer dizer discriminação, distinções, mas desunião, muitas vezes rechaço paranóico do Outro. Fazer distinções é importante e necessário. Faz ego e, com o ego, o mundo civil. As distinções do ego criam limites, e portanto, coagulam experiências, ajudam a formar posições, ideologias, a dar forma a projetos e planos. Toda forma vem dos limites. O próprio ego ganha forma a partir do estabelecimento de limites, da função separadora dos limites. Limites geralmente nos mostram onde as coisas terminam, assim nos ensinando algo sobre a finitude e, nesse sentido, são uma preparação para a morte. Por outro lado, aquilo que as fronteiras distinguem, fazem-no apenas indo ao fundo do paradoxo da união. Em outras palavras, muros são modos de desencontro, são separações, sonhos separatistas, sonhos de diferenças desapreciadas, e com eles estamos isolados. Separatismo é a doença da separação, separação como doença.

Por força desse agente invisível, transformamos fronteiras em muros e nos percebemos  apostando no des-encontro, no isolamento, contudo, não mais como escolha sedutora, fomentada pela explosão tecnológica e cibernética e pelo individualista, mas paradoxalmente, como forma de nos salvarmos, sobrevivermos, todos, numa corrente invisível de mutualidade. O que parecia da ordem do patológico transformou-se no seu avesso e num possível normal, a favor do saudável.

Estamos num movimento de voltar para casa. Muitos relutam em “obedecer” a esse chamado - o da reclusão, para stop, reduzir ou parar o ritmo, o tempo de Cronos. Darmos tempo para que aquilo que nos ameaça possa ir embora, diminuir seus efeitos venenosos, tóxicos sobre todos nós, individual e coletivamente.

Numa atitude de infantilidade, de rebeldia ou mesma de defesa psíquica, muitos não aceitam o status quo e fogem das internações, medicalizações, dos controles sanitários, num processo de negação, revolta ou quiçá da aceitação, pois dessa dependerá a salvação de muitos.

UM POR TODOS E TODOS POR UM!!

Parece esse ser o slogam mais adequado no momento, em que aplaudimos de pé de nossas janelas e sacadas todos aqueles que se sacrificam pela nossa saúde e sobrevivência, ao atuarem no front do problema.

Tudo tem, no entanto, o seu avesso ou vários avessos.


Rene Magritte (1898-1967). "A Reprodução Interdita", 1937. Fonte: wikiart.org

Heráclito descobriu que tudo reverte em seu contrário (o que podemos associar ao avesso) – ao qual deu o nome de enantiodromia, que tem função reguladora dos contrários. Jung (1997) aplica esse termo ao processo energético de compensação da psique, em que aspectos psíquicos negados e inconscientes, se impõem à consciência, individual ou coletiva, na busca de equilíbrio, decorrente de uma atitude excessivamente unilateral do ego.

O isolamento pode despertar angústias, ansiedades, lembranças de momentos dolorosos (para aqueles que viveram próximos ou distantes da explosão das grandes guerras mundiais), e/ou sentimentos de solidão, desamparo, abandono, representando muitas vezes, um confinamento, com seu tom sombrio de se expressar. E tantos outros sentimentos, emoções e pensamentos difíceis de aceitar, compartilhar e transformar, pela complexidade que envolve este contexto. 

São tempos de estar casa, em família e tudo o que essa palavra possa simbolizar no que diz respeito aos vínculos, aos afetos parentais ou ao olhar em direção ao nosso mundo interno. Os lugares ocupados por cada um, agora postos sob perspectiva; filhos sem escola, creche, avós ou babás para dar apoio ou suporte; pais sem trabalhos externos; avós e avôs sem o apoio dos cuidadores e familiares. Cada um necessitando se cuidar, para cuidar e preservar a vida do outro. Muitos que se achavam conhecedores das emoções, pensamentos e afetos do parceiro e/ou filho podem ser surpreendidos pelos efeitos dessa maior proximidade, intimidade situacional provocada, forçada.

Momento sui generis, especial de reflexão, introspecção, re-descobertas e re-conhecimentos de nós mesmos e dos demais que nos cercam. Cada um, com sua singularidade, poderá usufrui-lo de forma ímpar. 

A individualidade sacrificada em prol da coletividade. A tensão gerada caminhará para uma resolutividade, quando esse dinamismo se tornar consciente e conduzir a uma integração, isto é, a uma mediação entre os conteúdos conscientes e inconscientes, entre os dinamismos público/privado, individual/coletivo (Jung, 1997). Possivelmente, surgirão novos arranjos de organização do e no trabalho, na dinâmica familiar e parental, na utilização do tempo e dos espaços individual e social.

A percepção de uma unidade maior, planetária me toma de forma única. Recordo-me das tantas campanhas e encontros mundiais de apelo pela colaboração das nações em prol da redução da emissão de carbono, pela preservação do meio ambiente em suas várias possibilidades, pela solidariedade e respeito às minorias des-assistidas. 

Por força de um agente a-celular, isto é, uma partícula não constituída como uma célula, da qual todos somos formados, todo o planeta pulsa num uníssono, em comunhão, em que carros e pessoas circulam menos e tendem a ser consumidores mais criteriosos; nos solidarizamos pelo os que não podem sair e os ajudamos a se manterem abastecidos e medicalizados; apoiamos e damos suporte psicológico online,  aos profissionais que atuam no front, nos seus vários setores, nesse momento de extrema vulnerabilidade sanitária e emocional, numa escolha voluntária.

O que era percebido em sua maioria pelo seu lado “perverso” (as redes sociais e seus apps), revela seu avesso e se torna a solução, a saída para manter a ligação, o vínculo, o afeto, a comunicação, o acolhimento, o tratamento, o trabalho, afinal, a vida pulsando.

Essas reflexões me conduziram também a uma imagem de “estado de guerra” contra o inimigo, e a de um “fim de mundo”.  E Cecília Meireles, em sua crônica – O Fim do Mundo (1998), veio em meu auxílio e me afetando sob outros aspectos, me disse:

O mundo vai acabar, e certamente saberemos qual era o seu verdadeiro sentido. Se valeu a pena que uns trabalhassem tanto e outros tão pouco. Por que fomos tão sinceros ou tão hipócritas, tão falsos e tão leais. Por que pensamos tanto em nós mesmos ou só nos outros. Por que fizemos voto de pobreza ou assaltamos os cofres públicos - além dos particulares. Por que mentimos tanto, com palavras tão judiciosas. Tudo isso saberemos e muito mais do que cabe enumerar numa crônica.Se o fim do mundo for mesmo em fevereiro convém pensarmos desde já se utilizamos este dom de viver da maneira mais digna.Em muitos pontos da terra há pessoas, neste momento, pedindo a Deus - dono de todos os mundos - que trate com benignidade as criaturas que se preparam para encerrar a sua carreira mortal. Há mesmo alguns místicos - segundo leio - que, na Índia, lançam flores ao fogo, num rito de adoração.Enquanto isso, os planetas assumem os lugares que lhes competem, na ordem do universo, neste universo de enigmas a que estamos ligados e no qual por vezes nos arrogamos posições que não temos - insignificantes que somos, na tremenda grandiosidade total.Ainda há uns dias a reflexão e o arrependimento: por que não os utilizaremos? Se o fim do mundo não for em fevereiro, todos teremos fim, em qualquer mês... 

A partir daí, fui levada também a minha infância, quando falavam que o mundo iria acabar no ano 2000, pelas previsões de Nostradamus. Envolta em minhas reflexões sobre o tema, e, sem o saber, concordava com Cecilia - veementemente desacreditava dessa história do mundo acabar e achava com certeza que, o mundo acabaria ou acaba para todos, quando morremos.

Atualizando essa reflexão dos meus 10 anos, hoje avalio que essa experiência atual, compartilhada por todos, poderá fazer com que o mundo que conhecíamos até então, antes desse inimigo invisível se apresentar sorrateiramente, possa realmente acabar  se aproveitarmos essa oportunidade de, a partir de agora, escrever uma nova história como Humanos - seres individuais, mais plenos, nacionais e de consciência Una, planetária. Todos filhos da mesma Terra.

Esse novo mundo, em profunda transformação, inicia-se a cada dia deste novo hoje, ao pulsar por meio de um cordão cardíaco universal, na forma de orações, rezas, mensagens, piadas, sorrisos, memes, reflexões, palavras preenchidas de sentido e olhares que se atualizam e se reconhecem a cada click de “ACEITO”, em grupos no whaysapp, facebook, facetime, Skype, Zoom e em tantas outras possibilidades de estabelecer conexão e vínculos, mais preenchidos de verdade, solidariedade e afeto.



Salvador Dali (1904-1989) . "A criança geopolítica observando 
o nascimento do novo homem",1943. Fonte: wikiart.org


Fonte:
BARCELLOS, G. A Imaginação das Fronteiras. XXIV Congresso da AJB. Foz do Iguaçú. 2017. Disponível em http://www.gustavobercellos.net/a-imaginacao-das-fronteiras/. Acesso em 02/03/2018.
JUNG, C. G. A Energia Psíquica. Vozes. Petrópolis. 1997.
MEIRELES, C. Quatro Vozes. Crônica - O Fim do Mundo. pág. 73. Record Distrb. Rio de Janeiro.1998.

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Beatriz Abreu
Psicóloga Clínica. Especialista em Psicologia Junguiana. Especialista em Psicossomática. 
Formação em Arteterapia e Terapias Integrativas. Biomédica.
Contato: 11-97710-0590
@batrizarte
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