ARTE, PSICOLOGIA , ARTETERAPIA E VYGOTSKY – PARTE 2

por Isabel Cristina Pires

"Arte, Psicologia, Arteterapia e Vygotsky - Parte 2" finaliza a série referente à Monografia de conclusão do curso de Psicologia, intitulada “Arte como transformação: articulações entre o pensamento de Vygotsky, a psicologia e a arteterapia” (2019), de autoria de Isabel Cristina Pires. 

Este conteúdo foi dividido em 4 partes: [1] "Breve História da Arteterapia"< história da arteterapia > ;  [2] "Algumas Abordagens da Arteterapia no Brasil" < abordagens da arteterapia>; [3 ] "Arte, Psicologia, Arteterapia e Vygotsky Parte 1 < arte-psicologia-arteterapia-e-vygotsky-1  >;  e [4] "Arte, Psicologia, Arteterapia e Vygotsky Parte 2.

Isabel é jornalista, psicóloga e arteterapeuta com formação em Antiginástica ®Thérèse Berthera.

Boa leitura,
Flavia Hargreaves
Coordenadora do projeto artes.LOCUS


ARTE, PSICOLOGIA , ARTETERAPIA  E VYGOTSKY –  PARTE 2
por Isabel Cristina Pires

Fotografia: arquivo artes.locus.


No texto anterior arte-psicologia-arteterapia-e-vygotsky-1  > vimos que autores de diversas abordagens psicológicas defendem o uso da arte como elemento de transformação, terapia e cura. Abordei especialmente a visão do psicólogo russo Vygotsky e seu trabalho sobre a psicologia da arte, que defende que a obra de arte representa uma unidade contraditória entre forma e conteúdo. Para ele, tal contradição é sobrepujada pela catarse/reação estética, que exige do expectador da obra de arte um trabalho interno árduo de superação das emoções suscitadas pela obra. Resulta daí uma descarga de sentimentos, que modifica energia negativa em energia positiva.

Assim sendo, a reação estética descrita por Vygotsky se assemelha a uma explosão de energia ou a uma autocombustão, cujo efeito posterior predispõe o indivíduo a ações posteriores, sendo, por isso, organizadora do comportamento. Assim, na visão de Vygotsky, a arte é uma emoção inteligente que age no córtex cerebral, através da fantasia. Esse aspecto intelectual da vivência artística relaciona-se à catarse, que, segundo Schühli (2011), é o ápice da reação estética e permite uma transformação não apenas qualitativa, mas também quantitativa das emoções. Além disso, a arte atua na vontade, já que rompe o equilíbrio interno, que leva à modificação da vontade na busca de um novo sentido. Por condensar a realidade e por seu efeito intenso, a arte provoca, no indivíduo, o contato com mais fenômenos vitais do que ele viveria em seu quotidiano (SCHÜHLI, 2011). A ampliação do repertório de vivências pelo indivíduo em seu contato com a arte também se dá, como lembram Barroco e Superti (2014), pelo fato de ela conter o legado humano. Desta forma, possibilita-se ao sujeito abrir seus horizontes e modificar seu modo de ver o mundo e as pessoas.

Como a vivência estética marca o comportamento humano, é de fundamental importância que ela faça parte da vida do ser humano. Essa vivência estética é necessária, sobretudo, ao desenvolvimento da criança, possibilitando-lhe dominar suas vivências, “vencê-las e superá-las”, para que a psique aprenda a se elevar (SCHÜHLI, 2011, p. 139). A vivência estética é que transforma o material de que a obra de arte se constitui, retirado da realidade quotidiana, e apresenta ao homem sentimentos novos e a possibilidade de recriação dos sentimentos conhecidos. Por isso, Schühli (2011) afirma que, para Vygotsky, a arte excede a vida no ser humano.

Por isso, Vygotsky defende a educação estética, que possibilite a vivência estética da arte. Segundo Reis e Zanella (2014, p. 102), tal educação estética visa à própria vida, não somente à apreciação de obras de arte ou ao aprendizado de técnicas artísticas, mas à ampliação de oportunidades de vivência estética e de elaboração do que ela causa nos indivíduos, cujo resultado é a transformação do comportamento. Assim, a educação estética poderia mediar questões que levem o indivíduo a se questionar e a questionar sua realidade: “Como a percepção ou criação de uma obra de arte me afeta? O que me provoca a pensar? Como isso se relaciona com a minha vida?” No entender de Reis e Zanella (2014), a educação estética proposta por Vygotsky visa abrir espaço para que o indivíduo vivencie a transformação da realidade através da arte, pois as autoras entendem que estética, nessa perspectiva, é uma sensibilização na forma de lidar com a realidade, ampliando o sentido desta. Na concepção das autoras, através da arte, o homem imprime a sua visão de mundo e pode, pelo olhar estético, sempre presente na arte, enxergar a vida de forma nova, modificada. Essa característica potencial de transformação da arte pode levar “à recriação da vida, à reinvenção de si a partir de novos modos de relação consigo, com o outro e com o mundo (REIS E ZANELLA, 2014, P. 102). Assim, as autoras entendem que, na teoria de Vygotsky, pode-se relacionar vida e arte, a vida transformada em arte, que volta à vida de maneira nova. Por isso, Reis e Zanella (2014) defendem que é preciso levar a atividade criadora para o cotidiano de todos indistintamente. Além disso, deve-se entender que a criatividade não é inata, mas adquirida histórica e socialmente. Através da atividade criadora, o indivíduo pode recriar a realidade e, ao mesmo tempo, a si mesmo e pode, também, enxergar novas possibilidades para a sua vida e para seu contexto social.

Pelo que foi exposto até aqui, a abordagem sócio-histórica vincula intrinsecamente a arte ao psiquismo humano, pelas próprias características da obra de arte estudadas por Vygotsky. Para ele, o contato com a arte altera sentimentos, vontade, comportamento, consciência e psiquismo. Além disso, os efeitos de transformação que a arte invoca também nos levam a crer que, no trabalho do psicólogo, seja um instrumento útil e potente, para conduzir a psicoterapia a um nível ainda mais profundo e profícuo de trabalho. Da arteterapia, a psicologia pode aprender a desenvolver e expandir o uso da arte para além do desenho, da pintura e da modelagem, que são os materiais mais frequentemente usados. Além disso, poderá usufruir, em sua prática, dos estudos já feitos na área sobre o uso e o efeito dos diversos materiais artísticos e, inclusive, contribuir para a avaliação desses efeitos no psiquismo do indivíduo, um campo que ainda necessita de maiores investigações.

Da psicologia, a arteterapia tem feito uso das diferentes abordagens psicológicas para a compreensão das produções artísticas em termos de imagem, de desenvolvimento humano, de expressão do inconsciente e de aprofundamento das questões relativas ao psiquismo do indivíduo de forma geral. Através da psicologia sócio-histórica de Vygotsky, o arteterapeuta pode compreender melhor o funcionamento desse psiquismo, a partir do estudo da reação estética envolvida na obra de arte e no processo criativo. Assim, poderá buscar desenvolver ainda mais, no indivíduo, através da expressão artística, a capacidade recriadora de si e do mundo que o cerca.

Em Vygotsky, apreende-se a importância da arte, da vivência estética e do processo criativo na formação do psiquismo humano, o que é relevante tanto para a psicologia quanto para a arteterapia. Como relembra Reis (2014a), através do fazer artístico, desenvolve-se a criatividade e se pode estabelecer um contato profundo e eficaz entre paciente e terapeuta. De acordo com a psicologia social histórico-cultural, que enfatiza a natureza transformadora da arte, a arte pode mediar a relação criadora entre o homem e a vida e ampliar suas possibilidades de modos de viver. “É precisamente a atividade criadora do homem que o faz um ser projetado para o futuro, um ser que contribui para criar e modificar seu presente”. (VYGOTSKY apud REIS, 2014a, p. 255).

Uma vez que, na arteterapia, a arte ocupa papel central, a teoria de Vygotsky realiza a ponte entre a arte e a psicoterapia, dando suporte ao trabalho arteterapêutico. Na arte, o sujeito pode se reinventar de diferentes maneiras pelo devir estético. Reis (2014b) diz acreditar que a reinvenção de si, a transformação pessoal, nada mais é do que o objetivo principal de qualquer processo psicoterapêutico em geral e da arteterapia em particular, mesmo em diferentes abordagens. Para a autora, na arteterapia, a arte é usada como “ferramenta à reconstrução de si” (REIS, 2014b, p.156), pela possibilidade que a experiência estética abre ao contato com o outro e com o novo, o diferente e o inesperado. Através da arte, o indivíduo adquire uma percepção sensível e criativa da vida e um novo olhar para o seu quotidiano. Além disso, o fazer artístico, sempre presente na arteterapia, leva à autodescoberta. E a autora conclui que, com a arte, o sujeito pode se reconhecer como ator social e, ao mesmo tempo, autor criativo da sociedade da qual faz parte. “Na arteterapia, procuramos realizar isso na interface entre a Psicologia e a arte, pautados em uma concepção estética do sujeito, cuja própria vida pode ser transformada em uma obra de arte”. (REIS, 2014b, p.156).

Em suma, através de Vygotsky e de outros autores, percebe-se a arte como um elemento facilitador no caminho do autoconhecimento, já que ela possibilita ao sujeito ampliar a percepção de si e do seu mundo. O processo criativo da expressão artística permite que o sujeito desenvolva suas potencialidades, expresse sentimentos e pensamentos e encontre formas novas de construção e de reconstrução da sua realidade. Além disso, a arte permite uma ligação entre o consciente e o inconsciente, entre o mundo interno e o mundo externo. Pela abordagem de psicologia e arte de Vygotsky, a arte reflete a história e a cultura dos indivíduos em diferentes épocas e, assim, permite que o homem reflita sobre o seu passado e o seu presente e possa modificá-los e se modificar, ao mesmo tempo. Nessa perspectiva, a arte age no psiquismo total do indivíduo, por atuar nos processos mentais superiores, e eleva a consciência humana. Dentro da abordagem de Vygotsky, arte sempre implica em transformação. Segundo a teoria sócio-histórica vygotskyana, a arte, igualmente, pode levar a um processo de recriação de si mesmo e do mundo ao redor, uma vez que a vivência artística amplia os horizontes do indivíduo e lhe permite enxergar o mundo com novos olhos. 

__________________________________________

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROCO, S.M.S.; SUPERTI, T. Vigotski e o estudo da psicologia da arte: contribuições para o desenvolvimento humano. Psicologia & Sociedade. Paraná, 26 (1). Pp. 22-31, 2014. Disponível em: <https://www.researchgate.net/journal/1807-0310_Psicologia_e_Sociedade> Acesso em: 30/09/2019.
REIS, A. (2014 a). A arte como dispositivo à recriação de si: uma prática em psicologia social baseada no fazer artístico. Barbaroi Revista do Departamento de Ciências Humanas, Santa Cruz do Sul, 2014, n.40, pp. 246-263. Disponível em: < https://online.unisc.br/seer/index.php/barbaroi/article/view/3386> Acesso em: 08/10/2019. 
REIS, A. (2014 b). Arteterapia: a arte como instrumento no trabalho do psicólogo. Revista Psicologia Ciência e Profissão, 2014, Brasília, v. 34, no 1, pp. 142-157. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932014000100011> Acesso em: 05/09/19.
REIS, A.; ZANELLA, A.V. Arte e vida, vida e (em) arte: entrelaçamentos a partir de Vygostky e Bakhtin. Psicologia Argumento, Paraná, 2014, v. 32, n. 79, supl. 1, pp. 100-102, 105. Acesso em: 05 maio 2019. Disponível em: <https://periodicos.pucpr.br/index.php/psicologiaargumento/article/view/20463/19721
SCHÜHLI, V. A dimensão formativa da arte no processo de constituição da individualidade para-si: a catarse como categoria psicológica mediadora segundo Vigotski e Lukács.2011. 195f. Dissertação apresentada ao Curso de Pós- Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011. Disponível em: <https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/26141> Acesso em: 29/09/19.


__________________________________________


Isabel Cristina Pires
A autora é arteterapeuta e psicóloga. Tem formação e experiência em Antiginástica ® Thèrese Bertherat, é jornalista e professora de inglês e francês. Realiza atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia.
bel.antigin@gmail.com



__________________________________________

Caso tenha dificuldade em publicar seu comentário neste blog você poderá encaminhá-lo para o email: atelie.locus@gmail.com que ele será publicado. Obrigada.


@artes.locus
atelie.locus@gmail.com


Comentários

Postagens mais visitadas