"Handbook of Art Therapy"– Leitura Comentada – Parte III

Handbook of Art Therapy – Leitura Comentada – Parte III

O PAPEL DO ATELIÊ NA ARTETERAPIA

- RECUPERANDO A IDENTIDADE E A ESPERANÇA -

por Flávia Hargreaves

Revisão: Erika Kohler

Fotografia de arquivo atelie.LOCUS.

O texto de hoje traz reflexões sobre a minha prática como arteterapeuta a partir da leitura do artigo “Art Therapy with Adults with Severe Mental Illness”, de Susan Spaniol, que integra o livro: “Handbook of Art Therapy”, de Cathy A. Malchioldi. Mais especificamente da última parte onde a autora trata da configuração do ateliê.

Antes de entrarmos nos comentários sobre o artigo citado, preciso trazer algumas informações sobre a minha prática na área. Em 2009, tive a oportunidade de trabalhar como voluntária no ateliê de artes do Casa Verde - Núcleo de Assistência em Saúde Mental, e entre 2014 e 2018 fui colaboradora na Casa das Palmeiras, onde passei por várias funções: 1) monitora com a supervisão de Martha Pires Ferreira e Dr. Jean Pierre Hargreaves; 2) professora no curso Emoção de Lidar; 3) supervisora de artes e coordenadora dos ateliês de desenho, pintura e colagem.

Neste período minha atuação combinava os estudos da obra da Dra. Nise da Silveira e as supervisões oferecidas pelas instituições com a minha vivência artística.

Dito isso, retomo o texto de Susan Spaniol, que trata do uso da Arteterapia nos E.U.A. em grupos com doenças mentais graves - esquizofrenia, transtorno bipolar e depressão grave. A leitura de um artigo tão específico me pareceu, a princípio, ser útil somente para o trabalho voltado para este público. Porém, tal como ocorreu com o trabalho na Casa das Palmeiras, compreendi que o conteúdo oferecido me auxiliava na prática da Arteterapia com um todo.

 

A arte como um modo de conhecer

 

“Quando a pessoa capta imagens internas, luta com elas e as concretiza de forma bidimensional ou tridimensional, a arte se torna um ‘modo de conhecer’. O processo de lidar com os meios pode tornar-se uma metáfora da luta para criar uma nova identidade a partir dos pontos fortes remanescentes do eu anterior e das capacidades recém desenvolvidas.” (SPANIOL).

Segundo Spaniol, em um surto psicótico, uma parte da pessoa “desaparece”, ou seja, algo se torna inacessível, mundo interno e externo se confundem, as habilidades para lidar com a realidade concreta e com os sentimentos se extinguem temporária ou permanentemente. Mas, passada a crise, é possível identificar o que persiste do eu anterior que será combinado com as novas habilidades que a Arteterapia pode ajudar a desenvolver na busca de um reconhecimento de si, deste novo eu, que precisa de uma nova forma, novas cores e novos contornos.

Como um “modo de conhecer”, a arte torna visível o que estava oculto, nos oferecendo um caminho de acesso indireto e eficaz para lidar com conteúdos internos. Lembro-me de uma frase da artista francesa Louise Bourgeois (1911-2010), que diz mais ou menos o seguinte: “você pode aguentar qualquer coisa desde que a ponha no papel.” Costumo dizer que ao fazer arte nossos monstros se dão a conhecer e se tornam menos assustadores. Seguindo esse raciocínio, ao dar concretude na obra, em sua materialidade e em seu fazer, a Arteterapia promove a autoconfiança necessária para seguir em frente.

Considerando o recorte da pesquisa, em especial os com diagnóstico de esquizofrenia, o quanto será possível “conhecer”, tornar consciente? Acho que este é um aspecto relevante porque coloca em cheque as expectativas do terapeuta e o delicado ponto de equilíbrio possível para o cliente. O estudo da obra da Dra. Nise da Silveira me ajudou a compreender a importância de trabalhar com a parte preservada do cliente, o que, nas palavras de Spaniol, poderiam ser os “pontos fortes remanescentes do eu anterior”. Ao invés focar na doença e nas perdas provocadas por ela, nosso olhar deve se voltar para os pontos fortes da pessoa e a nossa proposta terapêutica deve favorecer o fortalecimento destes e o encorajamento na busca de novos caminhos de autoexpressão para, finalmente, vislumbrarmos uma vida mais plena e com significado. Importante destacar o reconhecimento por parte do campo da reabilitação psiquiátrica do papel que a arte desempenha no enriquecimento da vida das pessoas com doenças mentais, como nos diz Spaniol.

Como foi colocado em textos anteriores < H A Leitura Comentada Parte I >  e  H A Leitura Comentada Parte II > para que esta intervenção seja bem-sucedida é preciso que o terapeuta estabeleça uma relação autêntica com o cliente e acredite no processo.

Os grupos terapêuticos que o artigo aborda, funcionam em hospitais e clínicas de reabilitação, que operam em espaços desinteressantes e adaptados. Os grupos não são fixos e a triagem não é adequada, reunindo pessoas em diferentes estágios de tratamento. Além disso, o paciente participa de poucas sessões. A autora não trata de atendimentos individuais.

A estrutura que tive a oportunidade de vivenciar foi um pouco diversa, principalmente por não ser em hospital. No Casa Verde utilizávamos uma sala pequena no segundo andar sem muitos atrativos, mas que aos poucos foi ganhando um certo charme e uma funcionalidade próprias de um ateliê de arte. Este cuidado com o ambiente reverberou positivamente nas criações do grupo e na sua autoestima. Ao longo de um ano, embora o grupo não fosse fixo e a participação fosse livre, havia um núcleo de 4 ou 5 pessoas que estavam sempre presentes. Isso possibilitou que eu acompanhasse e estudasse as imagens produzidas em sequência, embora a instituição não demonstrasse interesse pelas imagens produzidas ou pelo meu estudo. Anos mais tarde, ao entrar na Casa das Palmeiras, a situação de frequência de clientes se repetiu, mas as duas “Casas” tinham posturas bem diferentes em relação à imagem. Na Casa das Palmeiras me deparei com arte por todos os lados e haviam ateliês diferenciados para cada linguagem (desenho e pintura; colagem; arte têxtil; xilogravura), além de oferecer vasto material para estudo. O foco do trabalho era criar condições favoráveis para que o cliente pudesse expressar imagens do inconsciente, de modo espontâneo, sem interferência do terapeuta/monitor, salvo informações de ordem técnica.

 

O papel do arteterapeuta no ateliê: facilitador ou terapeuta?

 

“Com o foco do ateliê na arteterapia, os terapeutas tornam-se facilitadores e colaboradores em vez de tratadores. Ao invés de selecionar materiais porque eles proporcionam contenção, eles oferecem materiais de qualidade artística que proporcionam dignidade e respeito.” (SPANIOL).

Em um ambiente de ateliê o terapeuta cumpre, muitas vezes, o papel de facilitador entre o cliente e os meios expressivos, podendo, ao oferecer materiais melhores, colaborar para o seu desenvolvimento artístico. O que entendo como “oferecer ferramentas para ir além!”

Costumo ouvir de colegas de profissão questionamentos sobre as fronteiras, às vezes nebulosas, entre um atendimento terapêutico e uma aula de artes. Digo “às vezes” porque na maioria delas me parece muito clara a diferença. Mas há momentos em que o trabalho terapêutico também é cognitivo, implicando em orientações sobre os materiais artísticos e/ou auxiliando no próprio fazer, evitando frustrações desnecessárias. Este apoio pode ser fundamental no caso, por exemplo, de alguma incapacidade física. Isso não diminui a autenticidade do trabalho expressivo nem o seu caráter terapêutico. A intervenção do arteterapeuta deve expressar a sua atenção às necessidades do outro, e o objetivo deve ser ampliar as possibilidades de realização no setting. Dizendo de outra forma, ao disponibilizar informações técnicas e operacionais dos materiais oferecidos, o cliente poderá fazer escolhas conscientes que respondam às suas demandas expressivas de modo que consiga dar existência física à sua obra.

Retomando a questão da frustração, é preciso compreender com que público estamos trabalhando. Gerar frustração diante da não realização da obra ou o incômodo ao lidar com determinado material devem ser vistos com cautela. Diante de um grupo cuja doença já causou grandes perdas este não me parece ser o melhor caminho. O terapeuta deve avaliar o que vai ajudar o cliente ou o grupo naquele momento do seu processo. Só então propor algo que os tire da zona de conforto.

Porque investir em materiais de qualidade?

Sobre o tipo de materiais disponibilizados em um ateliê terapêutico, podemos esbarrar em questões como a falta de recursos. Porém, é importante compreender que em certos casos usar material de qualidade, um pouco mais caro, pode ser fundamental na construção da autoimagem e no fortalecimento do cliente. Estar diante de um cavalete, com uma tela de tamanho médio ou grande, pincéis, tinta acrílica ou a óleo, gera um movimento completamente diverso do que estar diante de um papel 75g, formato A4 e um giz de cera de baixa qualidade. Também cabe lembrar a identificação de certos materiais com a educação infantil.

Spaniol, sugere explorar além da pintura em tela, a monotipia e a escultura como meios que proporcionam dignidade e respeito. Uma mudança de status, de doente para artista.

Com relação às técnicas citadas, a Monotipia é um processo de impressão única que pode ser encarado com pintura, operacionalmente muito simples, viável em qualquer espaço, e com resultados surpreendentes. Vale fazer uma busca por tutoriais na internet. A Escultura abre um leque muito amplo de possibilidades de exploração da tridimensionalidade. Cada material escolhido - argila, pedra, papel, sucata, etc. – traz a sua complexidade de execução, exigindo tempo e esforço diferenciado na execução da obra. Então temos, por um lado, a surpresa e a facilidade da Monotipia e, por outro a complexidade e o tempo da escultura.

Quanto ao investimento na compra de materiais de qualidade, sou amplamente a favor de explorar todo o tipo de material e recursos. Não uso o preço do material como uma garantia de valor expressivo, mas em algumas situações será um divisor de águas inserir materiais de qualidade, mais caros, como telas e tintas apropriadas garantindo que a expressão encontre uma materialidade adequada.

 Conversando com as imagens.

Sobre a atuação do arteterapeuta, a maior parte do texto trata da arteterapia diretiva justificada pela sua capacidade de estrutura e contenção auxiliando no fortalecimento da identidade. Porém, neste tópico “configurações do ateliê”, a autora traz um modo mais aberto no qual o terapeuta não deve sugerir temas ao grupo, fornecendo apenas as orientações necessárias para que possam desenvolver o trabalho, diminuindo o risco de crises de ansiedade. Com os trabalhos concluídos, o terapeuta deve demonstrar interesse e curiosidade, mas não fazendo perguntas investigativas ou interpretando para evitar longos silêncios. Ao invés disso, o terapeuta pode auxiliar os clientes a encontrarem palavras para descrever suas imagens, mas fará isso a partir de descrições concretas sobre o que eles vêem. A autora cita Betensky (1995), Nucho (1987), e B. Moon (1990), que descreveram variações deste método de questionamento, a partir da abordagem fenomenológica para interpretação de trabalhos de arte.

 

“Betensky orienta os clientes simplesmente repetindo a frase chave: ‘O que você vê?’. Nucho descreve um diálogo estruturado que inclui um inventário de formas e objetos no trabalho artístico, e Moon começa incentivando os artistas a listarem as cores e formas das coisas antes de nomear os objetos.” (SPANIOL)

Segundo a autora, a abordagem fenomenológica auxilia as pessoas com esquizofrenia e depressão porque tem a capacidade de aterramento por ser baseada na realidade externa. Também destaca a importância de respeitar a realidade do cliente ao incentivá-lo a se expressar com suas próprias palavras e estilo pessoal.


 Sobre a esperança, olhando além da doença.

 

“Terapeutas que trabalham com pessoas com doenças mentais estão frequentemente desesperados para se sentirem cuidadores capazes. Clientes com doenças mentais severas estão frequentemente desesperados para se sentirem competentes como seres humanos. Ambos, profissionais e clientes, estão frequentemente desesperados por intervenções que promovam um senso de esperança e dignidade para pessoas com doenças mentais.” (SPANIOL)

 

Este parágrafo me chamou a atenção por conta do termo “desesperados”. Parece embaraçoso e quero descartá-lo imediatamente. Identifico uma cumplicidade nesse “desespero”, um desejo de ser mais do que se é, de ser capaz de sanar a dor, ser capaz de recuperar o que se foi. Este é um desejo compartilhado pelos dois lados, me arrisco a dizer que por muitos de nós. Como acalmar o coração? Como avaliar os resultados do nosso trabalho? O que significa ser “normal”, estar “curado”? Precisamos de uma boa dose de aceitação, que não seja desistência; de uma dose de afeto, que não seja pena; de uma dose de humildade que não seja um subterfúgio da vaidade. Não sejamos arrogantes “curadores”, sejamos pontes capazes de ligar uma margem à outra do rio. E reconheçamos cada passo no caminho de uma vida com significado e presença. E faremos isso com Arte, com Empatia, com Entusiasmo e com Criatividade!

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Referências:

SPANIOL, Susan. Art Therapy with Adults with Severe Mental Illness. In: MALCHIOLDI , Cathy A., HANDBOOK OF ART THERAPY, NY, 2003. 

[1] Traduzido com o auxílio do tradutor - www.DeepL.com/Translator,2020

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Flávia Hargreaves

Coordenadora do projeto artes.LOCUS - artes e desenvolvimento humano, Arteterapeuta AARJ 402, Professora de Arteliê de Artes e História da Arte aplicada à Arteterapia, Professora dos cursos de Formação em Arteterapia Ligia Diniz, Leiza Pereira e Baalaka. Graduada em Comunicação Visual e Licenciatura em Artes Plásticas (EBA-UFRJ), Formação em Arteterapia Ligia Diniz. Foi colaboradora da Casa das Palmeiras (2014-2018) e Casa Verde (2009). 

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