O VIAJANTE SOBRE O MAR DE NÉVOA (PARTE 2)
Por
Daniella Liu.
Sobre a autora:
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O texto de hoje dá continuidade à publicação da semana passada (parte 1 - 24/10/18), com a segunda parte da análise da obra romântica “O Viajante sobre o Mar de Névoa”
(1818), do artista alemão Casper David
Friedrich (1774-1840) em diálogo com a obra “Ascensão” (2003), do artista contemporâneo
anglo-indiano Anish Kapoor (1954-). A autora, Daniella Liu, é artista plástica, aconselhadora biográfica e terapeuta artística, com
formação em arquitetura, e nossa parceira em cursos e palestras sobre arte e
antroposofia, tendo como objetivo principal a aproximação e o aprofundamento no
estudo teórico e prático da arte na perspectiva do desenvolvimento humano. Esta
análise foi realizada em 2010 como trabalho para o curso de
pós-graduação em História da Arte pela FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado),
sob orientação da profª
Nancy Betts.
Boa
leitura,
Flavia
Hargreaves
Coordenadora
do projeto artes.LOCUS
O
VIAJANTE SOBRE O MAR DE NÉVOA (PARTE 2)
https://www.wikiart.org/pt/caspar-david-friedrich/caminhante-sobre-o-mar-de-nevoa-1818
Anish Kapoor (1954-). Ascensão (2003). Imagem de divulgação
A ANÁLISE DA OBRA O VIAJANTE SOBRE UM MAR DE NÉVOA
DE CASPER DAVID
FRIEDRICH
Gostaria de iniciar a minha análise da
obra com uma frase de Casper David Friedrich: Cerre teu olho corporal, para que só assim vejas com o olho espiritual
a tua imagem. Traze então à luz aquilo que viste no escuro, para que retroaja
em outrem, do exterior para o interior.
Esta frase famosa do artista situa-se
na tradição neoplatônica do Renascimento que propunha, para arte, em especial a
pintura, o papel de mediadora entre a realidade espiritual e a corporal, ou
seja, a realidade perceptível sensorialmente, expressando seu desejo de transpor
os limites da experiência sensível e atingir a percepção supra sensorial. Seguindo
este apelo, podemos analisar a obra O
viajante sobre o mar de névoa.
Esta pintura de Friedrich apresenta em
primeiro plano uma figura masculina de costas para o espectador. Ele se
encontra de pé, no topo de um escuro monte de rochas que se ergue abruptamente
em primeiro plano. Totalmente absorvido e imerso na atmosfera de imensidão
diante de si, a figura contempla solitariamente uma paisagem montanhosa que se
estende a sua frente até o infinito, porém, coberta por um mar de névoa, que se
levanta do vale, revelando montes desnudados de pedra que surgem aqui e ali, na
direção dos picos e das montanhas que se avistam à distância. No céu, um grupo
de nuvens desliza suavemente lá do alto, em direção a terra. A atmosfera da
pintura está envolta por uma luz clara, porém pálida, emanando calma e tranquilidade.
Em primeiro plano, as cores escuras, utilizadas pelo artista, concedem peso e
concretude à composição.
A posição da figura está localizada bem
no centro no quadro, para ressaltar, provavelmente, a importância que o artista
concede ao ato de contemplar a natureza, evocando a sua grandiosidade, mas que
somente se revela, por meio da ação do indivíduo. As principais linhas de
composição do quadro, inclusive, são diagonais que convergem para este ponto
central, como: as principais linhas do escarpado pontiagudo do plano inferior, que
por sua vez, revelam, por meio do jogo de diferentes tons de marrom, as
protuberâncias e a aspereza das rochas; e as linhas mais suaves da cadeia de montanhas,
na parte superior do quadro.
O artista procurou enfatizar a
profundidade na pintura, por meio da sucessão de planos. Em primeiro plano,
estão dispostos a figura do homem que veste um traje preto, a cor mais escura
existente na composição e o escarpado, que revela com clareza a representação
da materialidade da rocha. Neste plano, as linhas que delimitam tanto a figura
quanto o escarpado são bem nítidas, criando um contraste entre o primeiro plano
e o restante do quadro, realçado pelos tons do branco das nuvens e do preto das
vestes do homem. As pinceladas utilizadas nas nuvens, principalmente aquelas
localizadas no plano inferior do quadro, criam movimento e leveza na pintura. Por
outro lado, o artista deseja transmitir, por meio do contraste das cores e da
materialidade da tinta, a polaridade entre luz e escuridão existente entre
estes dois espaços da pintura, um representando o mundo terreno, em tons
escuros e o outro o mundo espiritual, em tons claros, ressaltando a oposição entre
materialidade e imaterialidade, enfim, entre vida e morte.
Em segundo plano, estão localizadas,
então, as nuvens em tons feitos com o branco mais puro que, por sua vez, deixam
transparecer bem as pinceladas do artista. Estão também os diversos picos e colinas
com sua vegetação, que surgem aqui e ali na pintura. As cores utilizadas para
representação da rocha, neste caso, são mais claras do que as do plano anterior
e as linhas de contorno são menos nítidas, pois o artista utilizou a técnica do
esfumato para realizá-las.
Os planos que visualmente parecem mais distantes
na pintura são representados por uma sucessão de montanhas que apresentam uma
gradação de tons, variando do cinza mais escuro até o branco acinzentado. Na
parte superior do quadro, por sua vez, o artista representou o céu e as nuvens
com pinceladas mais movimentadas, também em tons contrastantes de branco e
cinzas. Gradativamente, à medida que se aproximam das montanhas abaixo, as
pinceladas ficam mais horizontalizadas e intercaladas em tons de cinza claro,
branco, amarelo claro e rosa claro, para insinuar o momento do amanhecer. Com
isso, Friedrich quis criar a noção de profundidade e perspectiva na pintura desta
paisagem.
Nesse sentido, a composição reflete uma
tendência de Friedrich em criar transições contínuas, entre os espaços próximos
e os mais distantes, ressaltando a questão da oposição entre os conceitos de
finito e do infinito. Do mesmo modo, o artista ilustra perfeitamente os
princípios do sublime, ao transmitir ao espectador o sentimento de cumplicidade
entre a alma do personagem e os elementos da natureza, aqui retratados por ele,
pelas montanhas, montes, céu e nuvens. Desta forma, os fenômenos da natureza,
representados com precisão pelo artista, transformam-se em objetos de meditação
religiosa. Friedrich deseja transmitir a sensação de transcendência do ser
humano, que ao contemplar a magnitude da natureza, revelando ao homem seus
segredos, poderá lhe revelar algo sobre si mesmo, qualificando um dos
principais objetivos da arte romântica, a união entre homem e natureza.
A OBRA ASCENSÃO DE ANISH KAPOOR
DIALOGANDO COM A OBRA
DE CASPER DAVID FRIEDRICH
Anish Kapoor (1954) é um artista
contemporâneo, que nasceu na Índia e mora, atualmente, em Londres. E sua obra Ascensão foi realizada, no ano de 2003.
A obra Ascensão traz uma parcela representativa da produção do artista. É
uma escultura, de caráter evanescente, constituída por duas paredes elípticas
que criam um nicho, em cujo interior se abriga uma coluna de gás carbônico, que
emana do solo através de orifícios pelos quais os vapores de gelo seco são desprendidos
do chão e sobem em direção ao teto num vórtice sugado por um grande exaustor.
Um dos instrumentos mais destacados da
escultura é a sua escala. Kapoor afirmou que, ao procurar fazer uso deste
instrumento, buscou uma escala que, ainda que enorme, não representasse o
aspecto mais importante da escultura, mas seu conteúdo. Para o artista, a
escala não se refere às relações de grandeza de um objeto em relação a outros,
mas a sua qualidade inerente de sentido. Podemos, assim, comparar a obra Ascensão com a figura de Friedrich, em O viajante sobre um mar de névoa, que se
encontra, absorto e paralisado, diante da uma imensa paisagem, à beira de um
penhasco. A sensação de pequenez do
homem, diante da imensidão da paisagem, induz à questão sobre a possibilidade de
o homem alcançar, em um momento de deslumbramento
diante da natureza, a escala divina. A noção de sublime na tradição romântica
pode ser traduzida, analogamente, na obra de Kapoor pela escolha da escala de
sua obra.
Ao apresentar uma forma indiscernível, a
escultura feita com vapor possibilita uma percepção alterada, isto é, dilatada
no tempo, que permite o espectador se remeter à dimensão onírica e meditativa.
Nessa alusão, Kapoor deseja, provavelmente, invocar o mistério religioso. O
esforço do espectador se traduz em desvelar as possibilidades míticas presentes
no ato de olhar para algo simples, mas que pode se transformar em algo menos
simples no tempo. O momento espiritual, segundo ele, se encontra justamente
nessa transmutação, na relação entre obra e espectador. No caso da obra de
Friedrich, a paisagem se revela, aos poucos, diante dos olhos do espectador,
diante de um mar de névoa, o que concede à pintura uma atmosfera de mistério e
meditação. Há igualmente uma dilatação do tempo, no desejo do espectador em aprofundar
seu olhar na pintura e deixar que a imagem reverbere sensações no seu mundo
interior. A dimensão divina, em Friedrich, está na relação entre homem e
natureza.
Em geral, as obras de Kapoor demandam,
frequentemente, a intervenção de outros sentidos, além da visão. O artista envolve
em suas obras polaridades metafísicas como: objetivação e subjetivação,
presença e ausência, solidez e intangibilidade. Em praticamente todas as suas
esculturas, seu fascínio pelo contraste entre luz e escuridão é marcante, que
representa também uma qualidade romântica por excelência. Por meio da interação
entre luz e forma, o artista aspira evocar experiências sublimes, capazes de
remeter a estados de espírito de base psicológica e atávica. Kapoor encaminha
suas investigações sobre a materialidade e imaterialidade, superfície e
profundidade, o visual e o tátil, enquanto procura equilibrar o literal e o
ilusório. Neste jogo de ambiguidades e polaridades, a obra se constrói sob o
olhar do espectador. Podemos perceber essa característica também na pintura de
Friedrich, quando o artista coloca sua figura de costas para o espectador,
impelindo-o a participar da cena.
Na opinião de Kapoor, a própria prática
da arte tem a capacidade de revelar verdades ocultas. Para ele, o artista
trabalha com a noção de uma verdade profunda, inicialmente velada e somente
descoberta, ao longo de um processo de intervenção artística contínua, até
deixar transparecer, finalmente, na obra de arte a dualidade entre matéria e
espírito. A escultura Ascenção, nesse
sentido, parece se apoiar em um material situado no limiar da tangibilidade, em
que os vapores se assemelham a uma coluna sólida, causando a ambiguidade de sua
leitura. O processo de apreensão da obra não ocorre, porém, imediatamente.
Tanto a incerteza quanto a busca de sua superação exigem tempo, tempo este, que
passa a fazer parte do trabalho. O refreamento na contemplação das dualidades e
das instabilidades, inerente à obra, seria o caminho que o espectador pode trilhar
rumo àquela inominada verdade. Para Kapoor, a verdade mística da arte é o tempo,
enquanto o espaço ultrapassa os limites físicos da obra e se completa no mundo
interno do espectador.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O aprofundamento de uma imagem nos leva a participar da profundidade do nosso ser. Gaston Bachelard (A terra e os devaneios do repouso).
O principal objetivo do artista do
movimento Neoclássico, ao recuperar os valores greco-romanos, foi o de criar um
espaço de arte, inspirado no modelo de equilíbrio, harmonia e clareza.
Preponderantemente racional, a arte neoclássica considerava a natureza um
fenômeno do mundo externo, isto é, do mundo real. O estilo romântico, ao
contrário, prezava o sentimento como ponte entre o indivíduo e a natureza. O
homem, ao reconhecer os riscos oferecidos pelo mundo externo, se entregou ao
sentimento de abandono e de pequenez da figura humana, diante da imensidão do
universo, do desconhecido e do divino. Nesse sentido, o Romantismo consolidou um
traço marcante da modernidade, visto que a cultura artística moderna nasceu de
uma dialética entre a razão e a sensibilidade do sujeito.
A partir do século XIX até os dias de
hoje, com o crescente e acelerado avanço dos métodos da ciência e da técnica, o
homem passou a buscar incessantemente novos significados para a sua existência.
Em um mundo, como o de hoje, onde as contradições e ambiguidades são ainda mais
evidentes, os ideais românticos de unidade entre mundo e indivíduo se
mantiveram como uma utopia. A arte contemporânea surge como uma nova
possibilidade de nos aproximarmos da utopia romântica, a fim de oferecer ao
público, a cada momento, novos sentidos para sua existência, onde o artista passa
a desempenhar papel fundamental para ditar novos paradigmas. Daí a grande importância,
em um mundo preponderantemente racional, da atividade de criação do artista que
por meio da sua sensibilidade, constantemente busca tornar visível o invisível.
Sendo o artista fruto de seu tempo,
isto é, do momento histórico em que vive e do espaço percebido por ele, pois retira
suas experiências do meio de onde provém. Sua obra, porém, é capaz de superá-lo
e transcender este tempo e este espaço. A arte, entretanto, não pode existir
sem o artista, já que o infinito só poderá ser apreendido na finitude da
atividade artística, dentro do ateliê do artista, onde ele constantemente entra
em contato com questões de dualidade entre finito e infinito, entre
materialidade e espiritualidade, inerentes à criação de uma verdadeira obra de
arte.
Desta forma, tanto Anish Kapoor hoje
quanto Casper David Friedrich, no século XIX, souberam lidar muito bem com as
questões de tempo e de espaço nestas duas obras, tornando-as eternas. Tanto na
pintura O viajante sobre o mar de névoa
quanto na obra Ascensão, as
qualidades inerentes de sensibilidade transcendem o visível e continuam a
reverberar nas almas de quem as contempla, renovando a percepção do mundo e das
coisas. Por meio da internalização
pelo espectador do espaço evocado pela obra de arte, ele pode reconhecer seu
aspecto sublime, aproximando-o, a cada olhar, da natureza que o criou, seja
direta ou indiretamente.
Talvez seja por isso que as escolhi
como objetos de comparação. Na minha opinião, a obra de arte permanecerá sempre
viva enquanto permanecer dentro da mente e do coração do ser humano,
transformando sua percepção do mundo, das coisas e, quem sabe, de si mesmo.
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Sobre a autora:
Daniella Liu é aconselhadora biográfica formada pela Escola
Livre de Estudos Biográficos (ELEB-SP), terapeuta artística, arquiteta e
artista plástica com especialização em História da Arte pela FAAP. Atualmente,
é vice-presidente da Associação Brasileira de Aconselhadores Biográficos e
docente de cursos de Formação em Antroposofia, entre eles, o curso de formação
em Medicina Antroposófica do Rio de Janeiro (ABMA-RJ). Trabalhou durante 5 anos
no ambulatório da Associação Monte Azul como terapeuta artística antroposófica.
Hoje, ministra palestras, cursos, workshops na área da arte e do
desenvolvimento humano, além de prestar atendimentos individuais e de grupo em
consultório em São Paulo e Rio de Janeiro.
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Referências
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna, São Paulo:
Companhia das Letras, 1999;
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço, Tradução de
Pádua Danesi, São Paulo: Martins Fontes, 2000;
GOMBRICH, E. H. A História da Arte, Tradução de Álvaro
Cabral, Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1999;
GUINSBURG, J. O Romantismo, São Paulo: Perspectiva,
2008;
HARVEY, DAVID. Condição Pós-moderna, Tradução de Adail
Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves, São Paulo: Edições Loyola, 2007;
LACOSTE, Jean. A filosofia da Arte, Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1986;
MAFFESOLI, Michel. Elogio da Razão Sensível,
Petrópolis: editora Vozes, 2001;
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito, São
Paulo: Editora CosacNaify, 2004;
OSTROWER, Fayga. Universos da arte, Rio de Janeiro:
Editora Campus, 1983;
WOLF,
Norbert. Friedrich, São Paulo: Taschen, 2003;
WOLF, Norbert. Romantismo, São Paulo: Taschen, 2008;
WÖLFFLIN,
Heinrich. Conceitos Fundamentais da História da Arte, 1989.
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