DESENVOLVIMENTO PESSOAL DA MULHER E ESPAÇOS DE CONVERGÊNCIA

Por Maria Cristina de Resende

Hoje o artes.LOCUS recebe a terapeuta Maria Cristina de Resende compartilhando conosco sua larga experiência como facilitadora de Círculos de Mulheres. Seus interesses a levaram tanto ao aprofundamento no estudo da psicologia junguiana, quanto ao das ervas medicinais, da ayurveda, da arteterapia e da terapia floral, sendo que as duas últimas constam no quadro das práticas integrativas e complementares. Tive a oportunidade de acompanhar sua trajetória pautada na busca de um olhar integral para o ser humano e na construção de uma profissional que está inteira em tudo o que faz. 
Boa leitura,
Flavia Hargreaves
Coordenadora do projeto artes.LOCUS


 DESENVOLVIMENTO PESSOAL DA MULHER 
E ESPAÇOS DE CONVERGÊNCIA

Círculo de Mulheres, Miguel Pereira, 2017.

Ao longo dos últimos 10 anos, dediquei boa parte dos meus estudos e trabalhos na promoção de espaços de convergências para mulheres, também chamados de Círculos de Mulheres, conduzindo e também participando de trabalhos que envolvam o despertar da mulher para uma consciência de si mesma e do resgate do seu corpo e da sua saúde. Nesses encontros, trabalhei com diversas perspectivas, desde aquelas voltadas para o conhecimento e o simbolismo dos ritos xamânicos/ancestrais até os psicoterapêuticos/arteterapeuticos, fornecendo um vasto material de análise sobre a importância que esses espaços possuem na desconstrução/reconstrução do signo chamado mulher e de suas diferentes formas de expressão numa sociedade que é marcada pela diferença de gênero.


Oficina de Farmácia Caseira, Miguel Pereira, 2018.

Durante todo esse período, apresentei-me nos convites e divulgações para os grupos que facilitava como psicóloga e demais formações, e por vezes terminada a mini biografia descrevendo-me como mulher. Hoje, me faço a mesma pergunta que Simone de Beauvoir fez em 1949, pois “se a função de fêmea não basta para definir a mulher, se nos recusamos também a explicá-lo pelo ‘eterno feminino’ e se, no entanto, admitimos, ainda que provisoriamente, que há mulheres na Terra, teremos que formular a pergunta: o que é uma mulher?”[1]

Este signo que denomina um ser humano como mulher fora pautado ao longo de séculos e séculos através de diversas premissas, desde a natureza fisiológica do ser humano fêmea até o papel social em que este ser deve exercer. Mas será que alguma dessas pessoas marcadas por este signo já se perguntaram como ser enquanto mulher? Desejo eu estar sob este signo? Que papel quero cumprir na sociedade?

Soa-me absurdo ainda estarmos lutando e questionando os mesmos constructos décadas, após décadas, como uma luta por reapropriação de território. Este, sendo o corpo, a mente, a racionalidade e a subjetividade deste “outro” chamado mulher. O que há de tão ameaçador nessa busca por igualdade?

Todavia, diminuo o espectro de uma reflexão social generalizada e trago para o meu campo da experiência profissional – e pessoal também – e observo que tais perguntas ainda são difíceis de serem respondidas pela maioria das mulheres com as quais trabalhei e me relacionei, pois é mais fácil cair nas descrições alinhadas a certo naturalismo como maternidade, fertilidade, cuidado, nutrição, atenção que estão sempre pautadas nos desdobramentos do aspecto fêmeas de ser. Mas como administrar o conflito daquelas que não partilham essas premissas pré-estabelecidas pela natureza fêmea da mulher? Que não respondem diretrizes sociais sobre como ser uma mulher? Cujo desejo pela sexualidade, pela inteligência, pela aventura ou pela espiritualidade não sejam resumidos a patologias psicológicas, sublimação dos impulsos sexuais, negação de um caráter feminino, desejo de ser como um homem, negando por sua vez, sua singularidade?

É então que os espaços de encontro entre mulheres se tornam o ponto de convergência para a reflexão sobre si mesma, seu papel nos diversos cenários em que atuam, olhar para o lado e perceber que há diferenças entre as iguais que estão sob a mesma marca, e gerando assim,  um “nós”.

Este “nós”, ou este coletivo mulher é o que Simone de Beauvoir aponta como carente neste segmento excluído da sociedade, pois há um coletivo de trabalhadores/operários – os sindicatos – há um coletivo de judeus, de negros, mas onde está o coletivo de mulheres?

Proponho que este coletivo seja os Círculos de Mulheres. Grupos, espaços de convergência, projetos terapêuticos ou não onde mulheres possam se reunir e trocar, se olhar, se conhecer, se perceber mais que apenas um “outro” excluído dentro de uma cultura patriarcal-capitalista-misógena, mas se perceber como agente ativa e participativa da construção da sociedade e de si mesmas.

Para tal participação, é importante que homens e mulheres se disponibilizem a uma crítica sobre a própria construção dos pilares de nossa sociedade ocidental. Não usarei aqui o marco ocidental-cristão, porque, apesar de ser comumente feito, não defenderei a ideia que fora apenas o cristianismo que relegou às mulheres ao papel de submissão e inferioridade social. Já no século IV a.C, Sócrates em seus Diálogos já mostrava a perspectiva que tal sociedade tinha a respeito da mulher

[...] a virtude de um homem consiste em ser capaz de conduzir bem seus afazeres de cidadão, de tal forma que poderá ajudar seus amigos e causar danos aos inimigos, ao mesmo tempo tomando cuidado para não prejudicar a si próprio. Ou, se quer saber sobre a virtude da mulher, esta também pode ser facilmente descrita. Ela deve ser uma dona de casa, cuidadosa com seus pertences e obediente ao seu marido. Há ainda uma virtude para crianças do sexo masculino ou feminino [..][2]

Na sociedade ateniense, cidade de Sócrates, as mulheres não eram reconhecidas como cidadãs, não tinham direito à participação da vida política, nem tampouco eram reconhecidas como parte da construção do pensamento da época. Logo, todo conhecimento que temos como base, origem de nossa sociedade ocidental, vem do discurso, da problematização e da perspectiva dos homens pertencentes a um segmento da sociedade. Isso não significa que a história do nosso pensamento seja uma falácia ou uma inverdade, mas significa que a voz das mulheres que existiram ao longo de toda a história do conhecimento ocidental foi calada, relegada às sombras ou a uma posição de inferioridade intelectual.

Muitas mulheres conseguiram manifestar seus pensamentos e suas produções intelectuais, artísticas e científicas e algumas inclusive, buscaram estimular e fortalecer o mesmo ímpeto em outras mulheres, como a poetisa Safo de Lesbos (612 a.C). Alguns registros mostram que Safo teria construído uma escola para mulheres onde as ensinava a arte da poesia, da musica e dos cultos religiosos. Suas alunas eram chamadas de hetarai, ou, companheiras.[3] Esse registro de mais de 2500 anos de história revela o quanto mulheres sempre precisaram se unir para conseguir manifestar seus desejos e demarcar seus posicionamentos diante do todo em que faziam parte.

Proponho-me a pensar sobre o porquê de uma parte da sociedade, que não é minoria[4], esteve relegada à submissão durante séculos da história humana? Quais os impactos que essa construção social misógina gerou em homens e mulheres na forma de pensar e estar no mundo? Como, hoje, podemos criar espaços onde possamos ressignificar esta marca chamada mulher e levá-la a um posicionamento igualitário entre todos e singular em relação a ela mesma?

Ainda pensando sobre a submissão da mulher, que muitas vezes gera inconsciência sobre si mesma, seu desejo, corpo e possibilidades de devir, penso que, como psicóloga e terapeuta habilitada em algumas práticas integrativas e complementares[5], é possível apresentá-la às diversas possibilidades terapêuticas para a problematização deste signo ajudando-a a reconstruir sua singularidade. O primeiro passo é dar voz a elas. Lembro-me que em um dos encontros realizados num Círculo, uma das mulheres perguntou se podia dizer realmente tudo que quisesse, como se sua voz, seu desejo de expressão precisassem de autorização para ser manifesto.

Subjetivamente esta é uma postura que está marcada na memória de cada célula de nosso corpo, pois carregamos conosco, em nossa psique, a herança de todas essas vozes caladas ao longo de todo esse tempo, e que muitas vezes são repetidas por diversas mulheres que acreditaram em algum momento da sua existência que podem algumas coisas e que não podem outras. Carregamos conosco a continuidade de nossos ancestrais, como um continuum psíquico que se manifesta muitas vezes de forma subjetiva, numa fala, numa crença, num pensamento, numa postura corporal, na relação com a sexualidade e nas mais diversas formas de expressão humana. Mas da mesma forma que carregamos essa herança, carregamos também a força e o potencial libertador e revolucionário, não numa posição extremista, mas numa revolução do pensamento, da forma de ver sua singularidade e de manifestá-la no mundo.

Os Círculos são lugares para que mulheres despertem 
e percebam que podem falar, podem criar, podem aprender, podem ser!

Oficina de Ervas e Defumação. Miguel Pereira, 2018.

Associadas aos encontros algumas dessas práticas complementares que auxiliam na tomada de consciência e manutenção de saúde podem ser oferecidas com o objetivo de facilitar essa reapropriação de territórios, sendo o primeiro deles o próprio corpo. Pois ao longo de muito tempo este corpo fora associado a obscuridade da natureza, ao diabólico, ao trevoso e ao sujo. Menstruar, amamentar, transar, gozar são atitudes impuras que devem ser ou reprimidas ou realizadas sob sigilo, sob pena de punição moral e em alguns casos até mesmo física.

Conhecer seu corpo, como funciona sua fisiologia, aproximar-se de seu ciclo menstrual, da relação com a gestação e da escolha de como parir seus filhos, transar no primeiro encontro ou nunca transar, amamentar e nutrir suas crias como processo natural (nunca vi uma cadela, uma gata ou uma girafa se esconderem sob galhos, árvores ou tocas ao alimentar seus filhotes) e principalmente gozar da vida, do corpo, do prazer sem que seja patologizada.

A psicologia, a Terapia Floral, a Ayruveda e a Arteterapia fazem parte desse leque de possibilidades que se somam nos encontros potencializando a descoberta da singularidade e lançando as mulheres cada vez mais num posicionamento sobre si mesmas e sobre seu lugar na sociedade e na história do mundo cada vez mais alinhadas àquilo que de fato faz sentido a cada uma delas. Mulheres como Safo de Lesbos escritora e poetisa, Hipátia de Alexandria matemática, astrônoma e filósofa, Joana Darc, Frida Khalo, Simone de Beauvoir e tantas outras que podemos estudar, dar voz a seus conhecimentos, honrando e dando continuidade ao esforço realizado para marcar a necessidade de um olhar feminista do indivíduo, da psique e da sociedade.

1º Congresso Internacional de Práticas Integrativas e Complementares e Saúde Pública e no International Ayurveda Congress. Rio de Janeiro, 2018.

Inspirada por essa idéia apresentei no início deste ano, 2018, no "1º Congresso Internacional de Práticas Integrativas e Complementares e Saúde Pública" e no "International Ayurveda Congress", o trabalho “Os Círculos de Mulheres e a convergência das PICs na Saúde da Mulher” (comunicação oral), expondo os resultados obtidos ao longo desse projeto, defendendo a proposta de saúde não somente do ponto de vista do cuidado físico, mas também do cuidado com a saúde mental e emocional através do somatório das diversas práticas alinhadas com os saberes da psicologia e da medicina, em especial a área da ginecologia. Acredito que quanto mais consciência as mulheres tiverem de seu corpo e das relações com os diversos aspectos da vida, quanto mais apropriadas de seus desejos e menos submetidas às diretrizes que ditam sobre nós, mais pluralidade e respeito às diferenças existirá no mundo.
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Sobre a autora:
Maria Cristina de Resende é formada em Psicologia, Arteterapia e Psicologia Junguiana, é Terapeuta Floral e estudiosa das medicinas tradicionais da Terra, como a Ayurveda, Xamanismo e o Sagrado Feminino. Buscadora dos saberes ancestrais das plantas medicinais, é criadora e artesã da linha de produtos de saboaria e cosméticos naturais Medicinae, ministra Oficinas sobre terapias naturais e preparados caseiros e facilita Círculo de Mulheres.


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[1] BEAUVOIR, Simone de. O segundo Sexo: fatos e mitos. Ed. Nova Fronteira, 3ª edição. Rio de Janeiro.
[2] Diálogo entre Sócrates e Ménon citado por Danilo Marcondes em Iniciação à História da Filosofia. Ed. Zahar, 2ª Ed, 2007.
[3] https://www.infoescola.com/biografias/safo/
[4] Podemos pensar em minorias excluídas quando trazemos a reflexão a respeito de núcleos da sociedade que estão em menor número/força e por isso são facilmente dominadas pelo núcleo de maior número/dominância.
[5] PICs – Práticas Integrativas e Complementares em saúde. Conjunto de práticas não médicas inseridas no Sistema Único de Saúde que visam a ampliação do olhar e do atendimento integral ao indivíduo.



Referências
BEAUVOIR, Simone de. O segundo Sexo: fatos e mitos. Ed. Nova Fronteira, 3ª edição. Rio de Janeiro.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia. Ed. Zahar, 2ª edição, 2007.Rio de Janeiro
NHAT-HANH, Thich. A arte de Viver. Ed. Harper Collins, 1ª edição, 2008. Rio de Janeiro.
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