O VIAJANTE SOBRE O MAR DE NÉVOA (PARTE 1)

Por Daniella Liu.
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"Como o sentimento passou a ser considerado essencial para a autêntica interioridade humana, foi na sua relação com a natureza que o artista encontrou uma maneira de amenizar suas angústias e incertezas. "
Hoje, o artes.LOCUS recebe Daniella Liu, nossa parceira em cursos e palestras sobre arte e antroposofia, tendo como objetivo principal a aproximação e o aprofundamento no estudo teórico e prático da arte na perspectiva do desenvolvimento humano. Daniella é artista plástica, aconselhadora biográfica e terapeuta artística, com formação em arquitetura. Nas próximas semanas estaremos  compartilhando nesse espaço sua análise da obra romântica “O viajante sobre o mar de névoa”, 1818, do artista alemão Casper David Friedrich (1774-1840), realizada em 2010 como trabalho para o curso de pós-graduação em História da Arte pela FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado), sob orientação da profª Nancy Betts.
Boa leitura,
Flavia Hargreaves
Coordenadora do projeto artes.LOCUS

Caspar David Friedrich(1774-1840). “Caminhante sobre o mar de névoa”, 1818.
Fonte: https://www.wikiart.org/pt/caspar-david-friedrich/caminhante-sobre-o-mar-de-nevoa-1818


O VIAJANTE SOBRE O MAR DE NÉVOA (PARTE 1)

Desde a Antiguidade, passando pelo Renascimento até os dias de hoje, a relação entre o homem e a natureza sofreu mudanças significativas no seio da civilização ocidental. Ao longo da história, a natureza sempre foi objeto de estudo para pensadores, cientistas e artistas, assumindo diferentes formas de representação. No período do Romantismo, o homem se via como um ser fragmentado e dissociado, buscando na natureza reencontrar sua unidade. Se por um lado, o homem, no início do século XIX, diante de uma crescente secularização do mundo, demonstrou uma necessidade em recolocar os mistérios da religião na natureza por outro, no âmbito filosófico e artístico, ela significaria uma ponte para a compreensão da própria existência humana. De modo que os artistas românticos conquistaram uma liberdade de expressão baseada, sobretudo, na idéia de que a natureza não seria somente um modelo universal a ser copiado, mas representaria, sobretudo, uma fonte de saber e objeto de pesquisa cognitiva, reconhecendo, no entanto, sua magnitude e reiterando seus aspectos sublime e divino.

É inegável a importância que, a partir de meados do século XVIII, adquiriu a arte para estrutura do pensamento filosófico. Não foi por acaso que este período histórico também foi de grande importância para o desenvolvimento da Estética, quando vários filósofos discorreram sobre o conceito do Belo e do Sublime, como Emanuel Kant (1724-1804). Neste contexto de grandes descobertas científicas e tecnológicas, mas também de intenso desenvolvimento intelectual e artístico, em meio às contradições entre natureza e cultura, surgiu a obra do artista romântico alemão Casper David Friedrich (1774-1840), apresentando, de maneira inovadora, o vínculo entre paisagem e observador, isto é, entre natureza e o homem, estabelecendo a conexão entre estética e razão. O pensamento do século XVIII manifestou claramente as indagações sobre a relação do mundo exterior da natureza com o mundo interior do sujeito, que o levou a consciência de si, outorgando à experiência estética um papel fundamental na nova visão da natureza, tão diferente das manifestações artísticas presentes no mundo do século XXI.
  
O ROMANTISMO E A PINTURA DE PAISAGEM

O século XVIII, também conhecido como Século das Luzes, foi um período de grandes transformações na história da humanidade. A doutrina iluminista defendia o domínio da razão sobre a visão teocêntrica que dominava a Europa desde a Idade Média. Segundo seus seguidores, o pensamento racional deveria substituir as crenças religiosas que impediam a evolução do homem. As novas atitudes transformavam a crença religiosa em fé na própria razão humana, baseada na valorização do indivíduo, na liberdade de pensamento e na difusão do conhecimento, até então controlada pela Igreja.

Por outro lado, a queda do regime absolutista, ocorrida no mesmo período, trouxe uma nova compreensão do mundo e da realidade. A classe burguesa ascendente buscava, então, novos caminhos para se desenvolver e prosperar. Com o olhar voltado para o futuro, o indivíduo desenvolvia aceleradamente inovações industriais e científicas, impulsionando profundas transformações econômicas, políticas, sociais e culturais no seio da sociedade. Se por um lado, o advento da Revolução Industrial provocou acelerados desenvolvimento urbano e crescimento demográfico, por outro, a Revolução Francesa havia infiltrado na sociedade uma nova visão de mundo, em que os indivíduos almejavam uma sociedade justa, com direitos iguais para todos e onde a felicidade comum seria alcançada.

Assim, as duas Grandes Revoluções ocorridas neste período na Europa provocaram e geraram novos processos, desencadeando forças que resultaram na formação da sociedade moderna, moldando, em grande parte, seus ideais. O progresso inerente ao processo de modernização, porém, trouxe várias contradições e os modelos da civilização racionalista sofreram, então, em toda a Europa, uma forte reação. Em diversos países surgiam críticas à razão, incrementadas pelas exigências por novas aspirações, ou seja, por uma nova visão do mundo. Essa reação manifestou-se fortemente com Jean Jacques Rousseau (1712-1778), o grande precursor do Romantismo, e em cuja obra o tema da natureza ocupou um lugar central. Para Rousseau, o estado natural é superior ao estado social, pois o homem nasce bom e puro e a civilização o corrompe. Nesse sentido, o ponto de partida da doutrina de Rousseau é a interioridade, um voltar-se para si mesmo, preponderando o sentimento, como a verdadeira expressão do indivíduo.

Portanto, a partir da segunda metade do século XVIII, imbuído pelos ideais românticos, o indivíduo voltou seu olhar para o passado e para a natureza, em busca do paraíso perdido, a fim de reconquistar a tão almejada felicidade. O Romantismo, portanto, nasceu como oposição ao movimento neoclássico. Enquanto um se fundou nas teorias clássicas greco-romanas e do Renascimento o outro, apresentou seus fundamentos apoiados na arte cristã da Idade Média, mais precisamente na arte gótica, com ênfase na liberdade de imaginação do artista.

As grandes transformações ocorridas na sociedade burguesa em ascensão incrementaram, inclusive, novas ideias do indivíduo sobre a arte. A primeira dessas mudanças refere-se ao rompimento do artista com a tradição, isto é, com o estilo proposto pelas Academias que, estabeleciam regras a priori. Consequentemente, os artistas começaram a buscar avidamente por novos assuntos. Se antes os temas escolhidos eram os históricos, os mitológicos, os religiosos e cenas e retratos da classe aristocrática, aos poucos, os artistas passavam a eleger temas relacionados à própria vida cotidiana e à natureza, como as pinturas de paisagem. De modo que os artistas românticos encontraram dois caminhos poéticos diferentes a trilhar: o estilo do pitoresco, adotado, por exemplo, pelo artista inglês John Constable (1776-1837) e do sublime, como foi o caso de Casper David Friedrich.

Nos países do norte da Europa, principalmente, na Inglaterra e na Alemanha, onde a natureza era considerada uma força grandiosa, porém, misteriosa e hostil, a pintura paisagística floresceu rapidamente. Como o sentimento passou a ser considerado essencial para a autêntica interioridade humana, foi na sua relação com a natureza que o artista encontrou uma maneira de amenizar suas angústias e incertezas. Daí a exaltação romântica dos estados, que por meio da imaginação, em que o mais profundo eu do artista e sua força espiritual poderiam levá-lo a penetrar no âmago da realidade. Neste subjetivismo idealista, as ideias de Rousseau encontraram profunda repercussão no espírito dos gênios do chamado Pré-Romantismo alemão, impulsionando o movimento literário do Sturm und Drang, que se estendeu para outros setores culturais, influenciando grande parte dos artistas da época.


A ARTE ROMÂNTICA EM CASPER DAVID FRIEDRICH

Por volta do ano de 1800, filósofos, escritores e artistas na Alemanha foram impelidos, então, a propagar uma nova visão do mundo e foi neste novo contexto histórico e sócio cultural, em que o homem buscava novos paradigmas para afirmar sua individualidade que nasceu o artista Casper David Friedrich.

Friedrich nasceu, em 5 de setembro de 1774, em Geifswald, uma pequena cidade portuária e universitária do Báltico que, até 1815, pertenceu ao reino sueco. Foi o sexto filho de Adolf Gottlieb Friedrich, um fabricante de sabão e de velas, e Sophie Dorothea.  Ainda bem jovem, viu-se confrontado com uma série de mortes no seio de sua família protestante. Inicialmente, em 1781, morreu sua própria mãe, em seguida, um ano mais tarde, sua irmã Elisabeth e, em 1787, seu irmão Johann Christoffer, que morreu afogado ao tentar salvá-lo, quando caiu num buraco de gelo e, em 1791, sua irmã Maria Friedrich, de tifo.

As primeiras manifestações artísticas de Friedrich foram desenhos de caligrafia nas páginas de alguns álbuns, chamando a atenção por seu talento. Por volta de 1790, recebeu suas primeiras lições de Johann Gottfried Quistorp (1755-1835), um mestre de desenho na Universidade de Geifswald, que lhe ensinou desenho de arquitetura e o incentivou a experimentar a técnica de gravação a água-forte. Mas foi o professor de literatura e estética Thomas Thorild (1759-1808) a figura mais importante na sua sólida formação inicial, pois lhe ensinou que o olhar físico, próprio do mundo externo, deveria se distinguir do olhar espiritual, pertencente ao mundo interior. Este pensamento apreendido, baseado mais na estética inglesa do que no idealismo alemão, iria, anos mais tarde, fundamentar seu percurso artístico.

Em 1794, aos 20 anos de idade, iniciou os estudos de arte na renomada Academia de Copenhague, sob a orientação dos professores Jens Juel (1745-1802), Nicolai Abildgaard (1743-1809) e Christian August Lorentzen (1746-1828). Eles representavam uma tendência artística entre o Classicismo e a nova ênfase pré-romântica, mas eram influenciados, por sua vez, pelos mitos nórdicos atribuídos a Ossian. No início da sua carreira, Friedrich ainda não tinha enveredado pelo gênero de pintura de paisagem, mas inspirou-se no entusiasmo pelo passado distante e, considerado um jovem talentoso, já revelava uma forma de olhar a natureza com especial sensibilidade.

Ao deixar a Dinamarca, em 1798, Friedrich foi morar em Dresden, mas levou consigo inúmeros estímulos artísticos, inclusive, uma visão mística e grandiosa da natureza. Em Dresden, a população da cidade, majoritariamente protestante, estava aberta para os ideais iluministas e, posteriormente, românticos. Gradativamente, Friedrich aprimorava seus desenhos e pinturas a óleo das paisagens, assumindo um estilo pessoal. Costumava participar das diversas exposições de arte da cidade e suas obras eram reconhecidas pela crítica local.  Aclamado em Weimar, apesar de ser a capital do classicismo alemão, Friedrich ganhou, em 1805, seu primeiro prêmio no concurso patrocinado pelo poeta romântico Johann Wolfgang Von Goethe (1749-1832), com o desenho Peregrinação ao pôr-do sol (1805), considerado pelo júri uma obra cuidadosamente executada e preenchida de um belo sentimento pela natureza, como um espaço sagrado.

Em 1806, Napoleão Bonaparte (1769-1821) ocupara a maior parte dos estados alemães, provocando o ódio contra os franceses e um crescente nacionalismo alemão. As suas obras foram ganhando notoriedade e no ano de 1810, foi um momento de grande importância em sua carreira, quando elas foram compradas pelo rei da Prússia, Frederico Guilherme III (1770-1840). E foi aceito membro da Academia de Berlim. A partir daí, a sua carreira progrediu rapidamente.

Friedrich, considerado um mestre de composição da quietude, exigia, de uma verdadeira obra de arte, a combinação entre elevação do espírito e inspiração religiosa, opinião partilhada por um círculo de amigos de Greifswald, com quem pensou em fundar uma arte eclesiástica protestante e de impulso progressista. Entusiasmado pela Idade Média, Friedrich elegeu as catedrais góticas em suas pinturas como símbolo dos sonhos medievais românticos, representando o patriotismo e o nacionalismo liberal que acompanhavam as guerras de libertação dos estados alemães.

Os poetas, filósofos, artistas e músicos românticos alemães, dotados de elevados ideais, se por um lado ansiavam por uma nação alemã autônoma por outro, desejavam a emancipação do indivíduo, acreditando em um mundo novo e melhor. A realidade, porém, não correspondia a estes anseios de liberdade. Por isso, Friedrich decidiu recuar para o mundo privado, da sua interioridade, recorrendo à solidão, conduzindo sua imaginação para o interior, isto é, para o mundo dos seus anseios mais íntimos e pessoais e não mais para os temas patrióticos externos. Em 1821, admitiu este pensamento ao poeta russo Vasily Zhukovsky (1783-1852): Tenho de me render ao mundo que me rodeia, unir-me às suas nuvens e pedras, para poder ser aquilo que sou. Preciso da solidão para poder comunicar com a natureza. (WOLF, 2003: 47)

Em 1757, o filósofo anglo-irlandês Edmund Burke (1729-1797), discorreu em seu tratado longamente sobre a diferença entre o Belo e o Sublime, defendendo a imaginação como fator fundamental na criação artística. Burke relacionou os elementos da natureza como os maciços rochosos das altas montanhas, os abismos e o mar revelam uma imensidão sem limites com os estímulos subjetivos, revelando as profundezas da mente humana. A noção estética de sublime trazida por Burke percorreu, portanto, todas as correntes do Romantismo e em especial nas obras de Friedrich que comentou anos mais tarde: Assim, o objetivo absoluto do homem não é o homem, mas o divino, o infinito. É na arte, e não no artista, que ele deverá empenhar-se! A arte é infinita; finitos são os conhecimentos e a capacidade do artista. (WOLF, 2003: 21)
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Sobre a autora:
Daniella Liu  é aconselhadora biográfica formada pela Escola Livre de Estudos Biográficos (ELEB-SP), terapeuta artística, arquiteta e artista plástica com especialização em História da Arte pela FAAP. Atualmente, é vice-presidente da Associação Brasileira de Aconselhadores Biográficos e docente de cursos de Formação em Antroposofia, entre eles, o curso de formação em Medicina Antroposófica do Rio de Janeiro (ABMA-RJ). Trabalhou durante 5 anos no ambulatório da Associação Monte Azul como terapeuta artística antroposófica. Hoje, ministra palestras, cursos, workshops na área da arte e do desenvolvimento humano, além de prestar atendimentos individuais e de grupo em consultório em São Paulo e Rio de Janeiro.
Referências
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna, São Paulo: Companhia das Letras, 1999;
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço, Tradução de Pádua Danesi, São Paulo: Martins Fontes, 2000;
GOMBRICH, E. H. A História da Arte, Tradução de Álvaro Cabral, Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1999;
GUINSBURG, J. O Romantismo, São Paulo: Perspectiva, 2008;
HARVEY, DAVID. Condição Pós-moderna, Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves, São Paulo: Edições Loyola, 2007;
LACOSTE, Jean. A filosofia da Arte, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986;
MAFFESOLI, Michel. Elogio da Razão Sensível, Petrópolis: editora Vozes, 2001;
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito, São Paulo: Editora CosacNaify, 2004;
OSTROWER, Fayga. Universos da arte, Rio de Janeiro: Editora Campus, 1983;
WOLF, Norbert. Friedrich, São Paulo: Taschen, 2003;
WOLF, Norbert. Romantismo, São Paulo: Taschen, 2008;
WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos Fundamentais da História da Arte, 1989.
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