SOBRE O DESENHO: [DES]APRENDENDO COM OS MESTRES [2]
Por Flávia Hargreaves
Pablo Picasso (1881-01973), “Ciência e Caridade”(1897), aos 16 anos.
Keith Haring (1958-1990), série “28 cabeças” (1989), aos 31 anos.
[texto
de abril de 2015, reeditado e ampliado em 29/08/2018]
Exercícios com linhas. Flávia Hargreaves, 2018.
A partir da Arte Moderna (séc. XX), grandes nomes como Pablo Picasso (1881-1973) e Wassily Kandinsky (1866-1944) reinventaram o desenho, libertando-o dos cânones clássicos e acadêmicos. Os caminhos percorridos por eles para a “libertação” do traço, na busca de algo que lhes parecesse essencial, se cruzam na recuperação da criança nos seus primeiros contatos com o desenho. Embora os artistas citados tenham desenvolvido sua obra em direções distintas, Picasso se mantendo figurativo e Kandinsky inaugurando a arte abstrata na História da Arte, ambos deixam um legado significativo para o que se tornaria não só o desenho, mas também a pintura, para as gerações futuras.
Wassily Kandinsky (1866-1944), “Primeira Aquarela
Abstrata” (1910), aos 44 anos.
Em 1910, Kandinsky, que até então havia
construído sua carreira como artista figurativo, mergulha em uma nova
experiência, na qual desconstrói o seu estilo, dispondo-se a rabiscar como uma
criança na primeira infância. Segundo Argan (1998), “Kandinsky se propôs a
reproduzir experimentalmente o primeiro contato do ser humano com um mundo do
qual não sabe nada, nem sequer se é habitável. É apenas algo diferente de si:
uma experiência ilimitada, ainda não organizada como espaço, cheia de coisas
que ainda não tem lugar, forma ou nome.” [...] Kandinsky se propõe a “analisar
no comportamento da criança, a origem, a estrutura primária da operação
estética” do qual ela se afasta gradativamente cedendo lugar a experiência
racional e intelectual do mundo, passando a viver em meio a significados e
explicações.
Pablo Picasso (1881-01973), “Ciência e Caridade”(1897), aos 16 anos.
Sobre esse tema trago uma citação
popular de Pablo Picasso, na qual diz que aos 15 anos sabia desenhar como
Rafael, mas que precisou uma vida inteira para aprender a desenhar como as
crianças. O artista contemporâneo Keith Haring
(1958-1990) diz que "as crianças sabem algo que a maior parte das
pessoas esqueceram”.
Keith Haring (1958-1990), série “28 cabeças” (1989), aos 31 anos.
Contribuindo para a reflexão sobre a importância da recuperação da criança para o exercício criativo, Ostrower (2013) nos recorda que “basta ver a alegria contagiante das crianças, inteiramente absorvidas em seu fazer, para ter uma ideia da grande aventura que é criar. Aventura, entrega e conquista; rumo a novas experiências e novos mundos. É como se as crianças, desde sempre, soubessem colher a essência do ser.”
O DESENHO E A ARTETERAPIA
Pensando sobre o desenho na Arteterapia, algumas perguntas me vem à mente: [1] Seria
a função do desenho na Arteterapia a recuperação dessa criança? Viva, livre, espontânea,
intensa e curiosa? [2] Como lidar com as falas reativas ao desenho tão comuns
no mundo adulto, tais como: “não sei desenhar” ou “parei no boneco-palito?
Respondendo a primeira, acredito que SIM e que para alcançar esse objetivo será necessário tornar a experiência com o desenho – rabiscar
e criar formas - prazerosa, divertida e interessante. A segunda envolve a questão
das competências e seria necessário iniciar um processo de resignificação das
crenças sobre as habilidades artísticas e a capacidade de criar. Pensando nas duas
questões em conjunto podemos cair na armadilha de acreditar que tornar a
prática do desenho terapêutico divertida, prazerosa e livre de julgamentos, seria assumir uma atitude infantilizadora com relação ao adulto diante de nós.
Como arteterapeuta já vivenciei a situação do cliente estar frustrado com o resultado do seu trabalho plástico e ao invés de ouvi-lo, defendi que estava muito bom. A consequencia foi ouvir a seguinte frase: "você acha que eu não sou capaz de fazer melhor do que isso?" Eu precisei pensar sobre isso...
Acredito que cada profissional deverá encontrar as suas respostas, mas seja qual for o caminho que deseje seguir precisará refletir sobre o lugar que ocupa em relação a prática artística. Ele não poderá compartilhar com o seu cliente o lugar de desconforto, insegurança e julgamento diante de suas próprias formas expressivas.
Como arteterapeuta já vivenciei a situação do cliente estar frustrado com o resultado do seu trabalho plástico e ao invés de ouvi-lo, defendi que estava muito bom. A consequencia foi ouvir a seguinte frase: "você acha que eu não sou capaz de fazer melhor do que isso?" Eu precisei pensar sobre isso...
Acredito que cada profissional deverá encontrar as suas respostas, mas seja qual for o caminho que deseje seguir precisará refletir sobre o lugar que ocupa em relação a prática artística. Ele não poderá compartilhar com o seu cliente o lugar de desconforto, insegurança e julgamento diante de suas próprias formas expressivas.
O ARTETERAPEUTA E A ARTE
O caminho que defendo é a aproximação entre o arteterapeuta e a Arte, contemplando o estudo da História da Arte, das linguagens e das técnicas, além da necessidade do profissional assumir o compromisso com a sua prática expressiva. Ou seja, para trabalhar com imagem é preciso estar familiarizado com os diversos estilos e soluções propostas pelos artistas
para expressar sua visão de mundo somado ao seu empenho no exercício prático de autoexpressão
em imagens. A partir daí, o arteterapeuta poderá formar a sua concepção do que seria “o
bom" e o "mau desenho” e estaria apto a sustentar o processo de descoberta do desenho, ou de qualquer outra linguagem plástica, do seu cliente.
O DESENHO, A ARTETERAPIA E A ARTE
Retomando as citações dos artistas no início desse texto, nas quais deixam clara a neccessidade de desconstrução da ideia do "bom desenho", propondo um “desaprender” para “reaprender”, não temos mais certeza se ao dizer “eu não sei desenhar” estaria qualificando ou desqualificando o sujeito diante dessa prática. Podemos ser levados a concluir precipitadamente que o nosso cliente adulto, que se
constrange diante de sua "inabilidade", parou no ponto em que artistas consagrados almejavam chegar. Que maravilha!!! Será?
Chegamos em um ponto importante para refletir sobre a prática do desenho em Arteterapia, e a pergunta agora seria: O que significa “saber desenhar”? Nosso cliente sabe desenhar? Os artistas como Pablo Picasso, Keith Haring, Wassily Kandisnky, Joan Miró e tantos outros, modernos e contemporâneos, sabem desenhar? Sim, sabem! Saber desenhar, não só na perspectiva da Arteterapia, mas também da Arte, significa descobrir na prática, no exercício, o seu traço particular. Seria apropriar-se do seu gesto, do seu movimento, de algo que lhe é próprio e intransferível. E, ao fazer isso, valorizar a descoberta ao invés de criticá-la.
Chegamos em um ponto importante para refletir sobre a prática do desenho em Arteterapia, e a pergunta agora seria: O que significa “saber desenhar”? Nosso cliente sabe desenhar? Os artistas como Pablo Picasso, Keith Haring, Wassily Kandisnky, Joan Miró e tantos outros, modernos e contemporâneos, sabem desenhar? Sim, sabem! Saber desenhar, não só na perspectiva da Arteterapia, mas também da Arte, significa descobrir na prática, no exercício, o seu traço particular. Seria apropriar-se do seu gesto, do seu movimento, de algo que lhe é próprio e intransferível. E, ao fazer isso, valorizar a descoberta ao invés de criticá-la.
Sobre o julgamento e a auto-critica, observamos o poder da comparação, muitas vezes estimulada no ambiente escolar ainda na infância. Embora fique mais evidente em trabalhos realizados em espaços coletivos, onde constatamos a comparação
com o trabalho do outro, também ocorre em atendimentos individuais onde a comparação se dá em relação a uma ideia do que se acredita ser "bom". Caberá ao facilitador desse espaço promover um olhar
ampliado em relação à Arte e estimular o espírito de colaboração, crescimento e respeito
mútuo. Ao invés de lutarmos contra a prática da comparação, sugiro usá-la a favor, revendo os parâmetros, ampliando o leque de referências retiradas da propria História da Arte.
Com relação às habilidades, não vejo problema algum em auxiliar o cliente tecnicamente com relação ao manejo e entendimento do material utilizado. O conhecimento não representa limitação mas libertação e pode ser facilitador na busca pessoal de uma linguagem capaz de expressar os conteúdos que buscam uma forma.
Com relação às habilidades, não vejo problema algum em auxiliar o cliente tecnicamente com relação ao manejo e entendimento do material utilizado. O conhecimento não representa limitação mas libertação e pode ser facilitador na busca pessoal de uma linguagem capaz de expressar os conteúdos que buscam uma forma.
CONCLUINDO
Os grandes mestres da Arte Moderna nos ensinam a
importância de “desaprender” e resgatar a criança em sua espontaneidade e
potência. O setting arteterapêutico
se mostra um local propício para, inspirados nos artistas, trilharmos o caminho da desconstrução/reconstrução de modo criativo. Se por um lado a História da Arte
nos inibe com sua exuberância e parece não restar opção senão a contemplação, a
mesma história nos mostra novos caminhos e possibilidades. A Arte Moderna e a
Arte Contemporânea, principalmente, nos convidam a participar desse mundo
criativo ativamente.
O exercício criativo do desenho pode ser libertador e se tornar um aliado na experimentação de si mesmo, ao reconhecer o traço, o gesto de cada um como uma expressão individual autêntica do seu modo de ser e agir no mundo. A folha de papel se torna o espaço ilimitado onde tudo é possível, onde ao estabelecermos novas relações entre as linhas, formas e cores estabelecemos novas relações com o mundo, na busca de uma forma que nos auxilie a recuperar um sentido que não seja uma mera explicação.
Para encerrar trago mais uma citação de Pablo Picasso: ''O desenho não é uma brincadeira. É muito grave e misterioso o ato de que um traço possa representar um ser vivo. Não apenas sua imagem, mas sobretudo aquilo que ele representa, aquilo que ele realmente é. Que maravilha! Não seria isso mais surpreendente do que todas as prestidigitações e 'coincidências' do mundo?''
O exercício criativo do desenho pode ser libertador e se tornar um aliado na experimentação de si mesmo, ao reconhecer o traço, o gesto de cada um como uma expressão individual autêntica do seu modo de ser e agir no mundo. A folha de papel se torna o espaço ilimitado onde tudo é possível, onde ao estabelecermos novas relações entre as linhas, formas e cores estabelecemos novas relações com o mundo, na busca de uma forma que nos auxilie a recuperar um sentido que não seja uma mera explicação.
Para encerrar trago mais uma citação de Pablo Picasso: ''O desenho não é uma brincadeira. É muito grave e misterioso o ato de que um traço possa representar um ser vivo. Não apenas sua imagem, mas sobretudo aquilo que ele representa, aquilo que ele realmente é. Que maravilha! Não seria isso mais surpreendente do que todas as prestidigitações e 'coincidências' do mundo?''
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Referências:
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. 5º reimpressão. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1998.
Referências:
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. 5º reimpressão. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1998.
OSTROWER,
Fayga. Acasos e criação artística. Campinas : Editora Unicamp, 2013.
Wassily Kandinsky (1866/ 1944), artista russo. Arte Abstrata.
Pablo Picasso (1881/1073), artista espanhol. Cubismo.
Keith Haring (1958/1990), artista norte-americano. Pop Art.
< https://www.pensador.com/autor/pablo_picasso/2/ > acessado em 29/08/2018.
________________________________________________________________________________Wassily Kandinsky (1866/ 1944), artista russo. Arte Abstrata.
Pablo Picasso (1881/1073), artista espanhol. Cubismo.
Keith Haring (1958/1990), artista norte-americano. Pop Art.
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Boa reflexão! Desenhar com aliberdade da criança nos devolve a libedade de sermos que somos. O adulto tudo julga, julgando assume o risco de se paralisar a ponto de nao mais se conhecer.
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