ENCONTROS E DESENCONTROS: ARTETERAPIA E EMOÇÃO DE LIDAR

Por Flávia Hargreaves
Revisão Erika Kohler

Ateliê de Artes Visuais, projeto artes.LOCUS, setembro de 2018. Fotografia: Flávia Hargreaves.

O nome da Dra. Nise da Silveira (1905-1999) é o primeiro que vem à mente de muitas pessoas quando se fala em Arteterapia e é uma referência importante nos nossos estudos. Porém, tanto niseanos quanto arteterapeutas afirmam que Emoção de Lidar é algo muito diverso de Arteterapia, e este discurso sempre me causou inquietação.

O termo “Emoção de Lidar” surgiu a partir de uma fala do Luis Carlos, cliente da Casa das Palmeiras[1], sobre a sua relação com os materiais e a possibilidade destes se transformarem em objetos com os quais criava uma relação de afeto. Dra. Nise adotou esta expressão para nomear a Terapia Ocupacional proposta por ela, que incluía os ateliês de livre expressão.

Dra. Nise da Silveira não considerava o trabalho realizado nos ateliês, tanto no STOR[2] quanto na Casa das Palmeiras, como sendo Arteterapia. Ela também questionava o uso do termo Arte para definir o uso de técnicas expressivas com fins terapêuticos, mas reconhecia que os artistas estavam em todos os lugares, inclusive em um hospital psiquiátrico. Poderiam emergir em seus ateliês, que, não por acaso, recebiam visitas e colaborações de artistas e críticos de arte reconhecidos como Ivan Serpa (1923-1973), Mário Pedrosa (1900-1981), Abraham Palatnik (1928-2020), entre outros. É importante ressaltar que quem introduziu as atividades artísticas (pintura e modelagem) como método de Terapia Ocupacional no STOR foi Almir Mavignier (1925-2018) que era funcionário do hospital e estudante de Artes. Mavignier seguiu sua carreira artística como pintor e artista gráfico, sendo reconhecido como um dos precursores da Arte Concreta no Brasil. Ele orientou internos que se tornaram famosos como Raphael (1912-1979) e Emygio de Barros (1895-1986). Outros nomes importantes entre os internos, cujo estudo das imagens está presente em publicações e documentários, são Fernando Diniz e Adelina.

 

 “[...] De início, direi que não aceito a denominação arte-terapia, muito empregada atualmente. A palavra arte tem conotações de valor, de qualidade estética. Frisemos, entretanto, que nenhum terapeuta tem em mira que seu doente produza obras de arte, e nenhum psicótico jamais desenha ou pinta pensando que é um artista. O que ele busca é uma linguagem com a qual possa exprimir suas emoções mais profundas. O terapeuta busca nas configurações plásticas a problemática afetiva de seu doente, seus sofrimentos e desejos sob a forma não proposicional. Utilizamos de preferência a linguagem plástica, expressão plástica.” [...](SILVEIRA, Nise da. MUNDO DAS IMAGENS. São Paulo: editora Atica. 1992).

 

Segundo a definição de arteterapeuta proposta na lei 3416/2015, ele “é o profissional que se utiliza dos recursos expressivos de artes visuais, música, dança, canto, teatro, literatura, como elementos capazes de favorecer o processo terapêutico das pessoas, buscando o autoconhecimento, a autoexpressão, o desenvolvimento humano, a criatividade, a prevenção e a reabilitação de doenças mentais e psicossomáticas.”

 

Dra. Nise deixa um inquestionável legado para estudo do uso terapêutico das linguagens expressivas/ "artísticas" - o desenho, a pintura, a colagem, a modelagem e xilogravura. Também incentivou a experiência teatral, a expressão corporal, a leitura de contos e a poesia. Soma-se a isso o estudo das imagens do inconsciente na perspectiva da Psicologia Analítica de C. G. Jung. A doutora defendia a expressão espontânea com o apoio de um monitor, cujo papel era estar ao lado sem interferir no processo criativo do cliente. Sua obra é pautada no respeito e no resgate da dignidade e da singularidade de cada um.


“O que distingue a arte-terapia das práticas adotadas no museu de imagens do inconsciente é que as atividades aí realizadas são absolutamente livres, espontâneas. O ateliê oferece um ambiente acolhedor, e a monitora (que não é uma arte-terapeuta) nunca intervêm. Apenas uma atitude simpática para com o doente, diremos, no máximo, uma função catalisadora.” (SILVEIRA, Nise da. MUNDO DAS IMAGENS. São Paulo: editora Atica. 1992).

 

A expressão espontânea é vista aqui como fundamental para a materialização de imagens do inconsciente e o papel do monitor, que não é um arteterapeuta, como alguém que precisa estar lá como apoio, como ponte, mas sem interferir no processo, sem propor nada ao cliente. Ele pode no máximo oferecer apoio técnico sobre o uso dos materiais quando necessário ou solicitado. Mas mesmo assim livre da ideia da existência de um jeito certo ou errado.

É justamente neste ponto que iniciam os desencontros entre Emoção de Lidar e a Arteterapia. Embora a Arteterapia também incentive a expressão espontânea, o arteterapeuta pode fazer intervenções, propor temas e oferecer determinados materiais/técnicas a serem vivenciados no atendimento, por serem considerados adequados naquele momento do processo terapêutico da pessoa. Esta experiência será vivenciada pelo cliente com o objetivo de ajudá-lo a se conhecer melhor, reconhecendo suas capacidades, seus talentos, seus desejos e, também, entrando em contato com suas fragilidades, seus medos e seus monstros internos e trazendo parte desses conteúdos para a consciência. Ao reconhecer seus pontos fortes e fracos, a pessoa será capaz de elaborar e transformar internamente suas questões, dando a elas uma expressão, uma forma, uma cor, etc. Este processo a faz rever o modo como está vivendo, a descobrir novos caminhos e modos de lidar com seus problemas, além de incentivá-la a realizar as suas potencialidades criativas buscando viver uma vida com sentido.

A intervenção e o modo estruturado e por vezes diretivo praticado pelos arteterapeutas seria então o ponto divergente entre a Arteterapia e a proposta terapêutica Emoção de Lidar, além do uso “equivocado” do termo “Arte” na “Arteterapia”. Abrindo um pouco mais o quadro, reconheço que se existem muitos modos de trabalhar a Arteterapia. Nessa perspectiva vejo o modo Emoção de Lidar, mesmo que não usemos este nome como um deles.

 

“Dra. Nise da Silveira via que os ateliês de Arteterapia poderiam ser locais de recreação mais do que utilizados apenas para a prática da expressão livre de imagens do inconsciente. Porém é importante acentuar que existem arteterapeutas que não dirigem as experiências e que respeitam as atividades como um recurso para o inconsciente se manifestar espontâneamente.” (BRASIL, C. CORES, FORMAS E EXPRESSÃO: Emoção de Lidar e Arteterapia na Clínica Junguiana. Rio de Janeiro: Editora WAK, 2013).

 

É preciso também levar em consideração o público atendido no STOR e na Casa das Palmeiras e as suas especificidades. O recorte da pesquisa teórica e prática da Dra. Nise era composto por pessoas acometidas pela esquizofrenia e o objetivo era diminuir a frequência ou até mesmo evitar reinternações. A Casa das Palmeiras foi criada com a proposta de fazer a ponte entre o hospital e a vida em sociedade, sendo um lugar de reabilitação. Já a Arteterapia é voltada para todas as pessoas, de todas as idades, auxiliando no entendimento e superação de dificuldades como em situações de doença, traumas, estresse, mudanças na vida, baixa autoestima, entre outras. Como também aquelas que não estão vivendo uma crise específica, mas que buscam o autoconhecimento e a qualidade de vida.


 Minha experiência na Casa das Palmeiras

Estive na Casa como monitora no ateliê de desenho e pintura entre 2014 e 2018. Como arteterapeuta enfrentei dificuldades diante da não interferência, em estar ao lado deixando o processo do outro fluir espontâneamente. Durante muito tempo tive a impressão de que não fazia nada, o que acabava trazendo um certo incômodo e desânimo. Aos poucos, com persistência e humildade, pude compreender que o fundamental era exatamente e tão simplesmente “estar ali” e assim ia construindo uma relação de afeto e respeito com cada um dos clientes da instituição.

Tão importante quanto as imagens produzidas era o afeto - o “afeto catalizador” -  funcionando como ponte, tornando possível a autoexpressão de quem por muito tempo estivera fechado em si mesmo. Segundo a doutora, a volta à realidade dependia do estabelecimento de uma relação de confiança com alguém e esta se estenderia ao contato com outras pessoas e com o ambiente. Os clientes estabeleciam vínculos afetivos entre si, com os monitores e funcionários, mas o grande vínculo era com a Casa e com a presença ainda sentida por muitos da Dra. Nise, que se refere ao ambiente como um importante agente terapêutico. Embora o termo Emoção de Lidar se referisse aos materiais e objetos criados, aprendi que a emoção de lidar estava presente em muitos outros aspectos, como nas relações interpessoais e na interação com o lugar, como uma entidade estruturante.

Fui afetada e transformada pela experiência, como muitos que passaram por lá. Não é fácil lidar com a loucura, mas é muito fácil se deslumbrar com ela e com a riqueza das imagens, e às vezes me vi esquecendo do sofrimento que a doença causa. E, então, uma fala ou um gesto me lembrava desta dor. Estar lá durante muitas horas, o que difere dos atendimentos arteterapêuticos, trouxe à tona muitos dos meus medos e monstros internos. Por esta razão, somos orientados a estar em terapia durante nossa estada na Casa.


Como a Casa das Palmeiras me ajudou 

a ser a arteterapeuta que sou hoje.

 Em 2014, iniciei minha colaboração na Casa das Palmeiras ao lado de Maria Cristina de Resende, psicóloga e arteterapeuta, também curiosa com o trabalho criado pela Dra. Nise. Conversamos muito sobre como trazer este aprendizado para a Arteterapia e criamos o Ateliê de Livre Expressão para público adulto. Foi uma iniciativa modesta e de curta duração, mas foi o suficiente para colocar uma luz sobre um novo modo de trabalhar a Arteterapia. O incentivo a escolha espontânea pelos materiais e livre expressão em imagens poderia ser aplicada a todos os públicos.

Emoção de Lidar me ensinou a acompanhar os passos do outro, estando ao lado, sem inquietações com as repetições de cores e formas, observando as pequenas mudanças nas imagens ao longo do processo arteterapêutico. Reforcei a importância que já dava ao ambiente e que, de certa forma, batizou o LOCUS. Um lugar com varanda e janelas para as árvores, um espaço acolhedor. A organização e a qualidade dos materiais artísticos oferecidos, deixando-os sempre visíveis, convidativos e acessíveis. Passei a observar com mais atenção todo o processo, gestos, falas e olhares que acompanham a criação. Com relação ao estudo das imagens, a organização e a cronologia das mesmas, a Arteterapia segue os passos niseanos.

No meu modo de olhar a Arteterapia - embora não seja niseana de forma purista - trago muito do seu aprendizado em diálogo com outras abordagens. Em minha prática com grupos tanto uso propostas estruturadas, quanto as de livre expressão. Nos atendimentos individuais tenho bastante flexibilidade com relação ao trabalho expressivo. É muito raro ter algo preparado e estruturado antes da sessão. Busco acolher o movimento do cliente, do mesmo modo que aprendi na Casa das Palmeiras.

Para finalizar, minha proposta é que o arterapeuta aprenda com Emoção de Lidar e integre este olhar a sua prática profissional, estendendo sua aplicabilidade a outros públicos. Experienciar a Casa das Palmeiras com seus encontros e desencontros singulares, as trocas de conhecimento, a convivência com os clientes e o mergulho no mundo das imagens do inconsciente, irá transformá-lo e torná-lo um profissional e um ser humano diferente.

#arteterpia    #emocaodelidar    #casadaspalmeiras    #saudemental    #afetocatalisador    #autoconhecimento

#autoexpressao    #artebruta    #artesaude    #mundodasimagens    #artecomoterapia



[1] CASA DAS PALMEIRAS, espaço de reabilitação psiquiátrica fundado em 1956 por Dra. Nise da Silveira (psiquiatra), Maria Stela Braga (psiquiatra), Belah Paes Leme (artista plástica) e Ligia Loureiro (assistente social).

[2] STOR - Setor de Terapia Ocupacional e Reabilitação – Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro, RJ, atual Museu de Imagens do Inconsciente, RJ. Dra Nise Da Silveira assume este setor em 1944, quando foi reintegrada ao serviço público.

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Referências:

BRASIL, Claudia. CORES, FORMAS E EXPRESSÃO: Emoção de Lidar e Arteterapia na Clínica Junguiana. Rio de Janeiro: Editora WAK, 2013.

SILVEIRA, Nise da. O que é a Casa das Palmeiras. In : Casa das Palmeiras. Emoção de Lidar: uma experiência em psiquiatria. Coord. Nise da Silveira. São Paulo: Editora Alhambra, 1986.

SILVEIRA, Nise da. MUNDO DAS IMAGENS. São Paulo: editora Atica. 1992.

<https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa5802/almir-mavignier > acessado em 25/11/2020.

 

No dia 25/11/20, estive com Isabel Pires conversando sobre o tema no instagram @isabelpires.artepsi

Assista a nossa live no link: https://www.instagram.com/tv/CICHHbpnmu2/?igshid=joy1qsd66k8g


 

Flávia Hargreaves

Coordenadora do projeto artes.LOCUS - artes e desenvolvimento humano, Arteterapeuta AARJ 402, Professora de Arteliê de Artes e História da Arte aplicada à Arteterapia, Professora dos cursos de Formação em Arteterapia Ligia Diniz, Leiza Pereira e Baalaka. Graduada em Comunicação Visual e Licenciatura em Artes Plásticas (EBA-UFRJ), Formação em Arteterapia Ligia Diniz. Foi colaboradora da Casa das Palmeiras (2014-2018) e Casa Verde (2009). 

@ artes.locus

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