MITO DE NARCISO E O FENÔMENO CONTEMPORÂNEO DA SELFIE

Por Gloria Fisher
Contato: mgloriafisher@gmail.com

Hoje o artes.LOCUS recebe a arteterapeuta Gloria Fisher compartilhando conosco suas reflexões acerca do fenômeno contemporâneo da selfie. Meu primeiro contato com essa pesquisa foi durante a sua oficina “ESPELHO, ESPELHO MEU ... O OLHAR AO SI MESMO” no “II CIRCUITO AARJ – CASA DAS PALMEIRAS: Mandalas em Arteterapia e Emoção de Lidar”, em julho de 2018.
Boa leitura,
Flavia Hargreaves
Coordenadora do projeto artes.LOCUS

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MITO DE NARCISO E O FENÔMENO CONTEMPORÂNEO DA SELFIE
por Gloria Fisher

Instalação “Ideias que valem a pena espalhar”, do artista norte-americano Evan Roth (nascido em 1978), foto do catálogo da exibição “Ego Update, o futuro da identidade digital no NRW” (Dusseldorf, set./2015 a jan./2016); e “Narciso” (1599), pintura barroca do artista italiano Michelangelo Merisi (1571-1610), conhecido como Caravaggio (fonte: https://www.wikiart.org).

Todos os dias milhares de selfies são postadas nas redes sociais, como uma forma de comunicação visual. A intenção dessa discussão é buscar refletir sobre a selfie no mundo contemporâneo. A Psicologia Analítica, também conhecida como Psicologia Junguiana, por trabalhar por meio de análise de símbolos, nos traz um excelente instrumento metodológico para se estudar esse fenômeno contemporâneo.

A selfie provoca reflexões sobre o narcisismo no mundo digital.(1) Em algum grau a selfie já foi estigmatizada popularmente como um comportamento puramente narcísico, reduzindo-a de alguma forma a um sentido único, como um signo. Ao se buscar simbolizar, abrimos seu sentido para “numerosas variantes análogas” e, “quantas mais possuir, tanto mais completa e correta é a imagem que traça seu objeto.” (2)

Fotografar passou a fazer parte do nosso cotidiano e influenciou o modo como lidamos com nossa noção de identidade. Cabe a reflexão acerca de que corpo é esse que se congela na imagem. A selfie, em sua aparente espontaneidade, tende a buscar um autocontrole, onde a pessoa quer geralmente parecer jovem e transmitir algo de si no momento. Isso é facilitado por meio da manipulação das imagens, que fazemos antes da postagem na mídia social. Nessa tentativa de autocontrole na produção da imagem, a pessoa tende a se tornar um produto a ser consumido pelos outros: “curtir”, “compartilhar”, “memes”, “respostas”, “parar de acompanhar”, etc., em resposta a suas imagens mergulhadas nas mídias sociais. (3)

Vamos refletir um pouco sobre o Mito de Narciso. Logo que Narciso nasceu, sua mãe, uma ninfa, percebeu sua extrema beleza e se alertou, somente aos deuses era permitido o excesso de beleza. Como era comum na época, foi consultar um profeta para saber se seu filho viveria muitos anos, e sua hermética resposta foi: “Se ele não se vir.” (4)

Teria o desenvolvimento tecnológico digital, ao acoplar câmeras aos celulares, esbarrado, de algum modo, a uma situação arquetípica no qual o Mito de Narciso foi constelado em nosso mundo contemporâneo? Podemos metaforicamente comparar o espelho d’agua no qual, em seu mito, Narciso se vê sem se reconhecer e pelo qual se apaixona, ficando imobilizado e não conseguindo parar de olhar, aos milhares de selfies que aparecem nas mídias sociais todos os dias?

Simbolizar significa descobrir o segredo oculto na situação concreta. Narciso vive, em seu Mito, um estágio de inconsciência de si pois é, ao seu reflexo, que ele não reconhece como seu, que ele ama. (5) Talvez aí as duas imagens possam se esbarrar...vale a reflexão nos clicks de celulares que fazemos e vemos ser feitos no dia a dia ao nosso redor.

“Aquele que olha o espelho da água vê em primeiro lugar a própria imagem. Quem caminha em direção a si mesmo corre o risco do encontro consigo mesmo” (6)

O Mito de Narciso é realmente uma história de amor, a advertência reside na natureza desse amor, sua própria imagem, que para ele era um outro. No final da história, na tomada de consciência de si, Narciso se reconheceu no espelho d’água e, no momento dessa percepção ocorre seu desaparecimento e em seu lugar surge uma flor, símbolo de transcendência - narciso.

Nas palavras de Stein: “O amor e o amado morrem juntos em uma sincronização perfeita, porém os dois não podem se aproximar, estão separados por uma fina, mas impenetrável barreira d’água – aí há a transcendência – surge a flor”. (7)

“As divindades nos mitos servem de exemplos, proporcionam modelos de vida, desde que se entenda sua referência de roçar o transcendente.” (8)

Como diz Stanley Keleman em seu livro Mito e o Corpo: “...quando idealizamos a imagem, em lugar da experiência corporal nós nos descobrimos vivendo a imagem.” (9)
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Gloria Fisher. Médica Pediatra, atualmente aposentada. Psicomotricista, Arteterapeuta, filiada a AARJ, Pós Graduação em Psicologia Junguiana na Estácio. Trabalha na Casa das Palmeiras e em consultório particular.
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Referências
(1)                 Ego Update, o futuro da identidade digital no NRW. 2016, Dusseldorf: Dza Druckerei Zu Altenburg GMBH, 2016.
(2)                JUNG, C.G. Obras completas vol. 5. 9ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2013.
(3)                LASCH, C. The Culture of Narcissism. Amazon.com World Library of Mental Health, 1991.
(4)                BRANDÃO, J. Mitologia grega vol. II. Petrópolis: Editora Vozes, 2015.
(5)                KAST, V. A dinâmica dos símbolos. Petrópolis: Editora Vozes, 2013.
(6)                JUNG, C. G. Obras completas vol. 9/1. 11ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014.
(7)                STEIN, M. Soul: treatment and recovery. Londres: Routledge, 2015.
(8)                CAMPBELL, J. Mito e transformação. São Paulo: Editora Ágora, 2008.
(9)                KELEMAN, S. Mito e Corpo. 3ª ed. São Paulo: Summus Editorial, 2001.
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