ARTE E CIÊNCIA – UMA RELAÇÃO OBRIGATÓRIA?
Mais
uma vez, as redes sociais tiveram um papel decisivo para que hoje pudéssemos
receber o artista e naturalista Orlando Graeff, compartilhando conosco suas
reflexões sobre a relação entre Arte e Ciência. O tema atravessa a história e
nos leva a algumas questões fundamentais para pensarmos neste estilo de arte,
NATURALISTA. Uma delas seria a necessidade de atenção, de observação apurada
aos detalhes do objeto, um mergulho no próprio objeto em uma relação
espaço-tempo diferenciada. E como o artista retorna desse mergulho? O que traz
e imprime nas suas imagens, elaboradas pacientemente e com muita habilidade? O
que fazer com a emoção que a experiência provoca? Qual a medida "exata"
para essa combinação do olhar artístico e científico sobre a natureza? O que
faz com que as imagens de Rugendas, por exemplo, que estiveram há poucos meses
em exposição no Rio de Janeiro, nos emocione? Seria o encontro harmônico entre
a BELEZA, a CIÊNCIA e a EMOÇÃO?
Boa leitura.
Flávia Hargreaves
- Coordenadora do
projeto artes.LOCUS
______________________________________ARTE E CIÊNCIA – UMA RELAÇÃO OBRIGATÓRIA?
por Orlando Graeff
Naturalista e Artista
Contato: orgraeff@gmail.com
Ilustração Orlando Graeff. A floresta estacional semidecidual, que um dia recobriu a região de Rondonópolis, no Mato Grosso, desapareceu quase por completo, na esteira do desenvolvimento. Através do desenho, usando fragmentos vestigiais dessas matas, assim como a própria memória do autor, foi possível reconstituir sua fisionomia antiga.
Depois do advento da fotografia, descoberta no Século XIX, a humanidade tem gradualmente abandonado a ilustração científica, entre outras artes descritivas, na tarefa de figurar e descrever espécies, cenários e fenômenos naturais. Claro. Afinal, para que complicar e se demorar, para registrar com habilidades gráficas, aquilo que a fotografia vem fazendo cada vez melhor, ano após ano? Primeiro, através das chapas primitivas, ainda sujeitas a cansativos e caros processos de revelação; depois, não há tanto tempo assim, veio a fotografia digital, com definição cada vez maior, num avanço que parece não ter mais fim. O ritmo do próprio conhecimento científico, sujeito às demandas tecnológicas apressadas, parece não abrir espaço para demoradas pinturas ou desenhos, realizados por alguns poucos artistas habilidosos. Por que então ainda nos preocupamos com assunto como esse – ARTE E CIÊNCIA?
Não podemos perder de vista um dos principais dogmas da cultura: tudo existe porque NÓS humanos existimos! Sim, a civilização é o produto da contemplação e compreensão do que nos cerca. Antes do surgimento do olhar reflexivo sobre o meio, nada existia. Apenas o que fossem instintos guiava nossa espécie. Os bichos assim ditos “irracionais” não têm ideias sobre passado ou futuro. Vivem apenas, tocando cada minuto como parte intensa de algo que os move: o presente. Ou seja, antes de começarmos tudo isso, fazíamos o mesmo – sentir fome, comer; desejar o parceiro reprodutivo, copular; sentir sono e cansaço, dormir. Só que, depois da primeira e decisiva reflexão, realizada sabe-se lá em que época remota, passamos a querer registrar o que sentíamos e víamos. Era a formação embrionária da cultura! E nela, veio imediatamente a ARTE.
Sim,
a arte antecede toda a cultura. Beneficiados pelo maior avanço evolutivo que
alcançamos... Não, não falo da inteligência apenas, falo que foi o POLEGAR OPOSITOR,
que nos permitiu segurar objetos e, dentre outras brilhantes atividades úteis
realizadas, agarrar pedaços de carvão, ou de quartzito, e rabiscar, registrar
nas rochas o que víamos, o que sentíamos. O impressionismo e o expressionismo
certamente antecederam o naturalismo, o romantismo e todos os demais movimentos
artísticos mais recentes – rabiscávamos o que víamos, simplesmente porque o
sentíamos... e queríamos registrar, guardar e embasar as próximas descobertas.
Grafismo
rupestre da Serra da Capivara, no Piauí, com mais de 12.000 anos,
registrando o
que talvez fosse uma onça-parda ou felídeo de grande porte
O
vibrante Oscar Wilde apontou: “A
vida imita a arte, muito mais do que a arte imita a vida”. Podemos até não
concordar, num primeiro olhar. Ora, ora! O que pintamos, cantamos ou
interpretamos é copiado do que fazemos e do que vimos. Nada mais lógico! Só que
não é bem assim e nossos antepassados bem o atestariam. Quando pintaram palmas
das mãos, animais ou arabescos indecifráveis, nas rochas protegidas das
cavernas, dezenas de milhares de anos atrás, eles estavam descobrindo formas e
ideias. Porque as pintaram, passaram a reconhecê-las, como coisas que os
interessavam para além de um mero almoço, de um medo ocasional, ou de uma
cópula prazerosa e fugaz. Passamos a dar nomes mais extensos que grunhidos às
coisas, porque éramos capazes de desenhá-las e registrá-las para novas
gerações. Ou seja... A ARTE precedia a vida civilizada!
O
fantástico artista naturalista Etienne
Demonte (1931 – 2004), que trabalhou em Petrópolis, região serrana do Rio
de Janeiro, costumava dizer, segundo Maurício Verboonen, que conheceu a
família: “Através do desenho, pode-se conhecer e mostrar os detalhes relevantes
de uma flor ou animal”. Era o que fazia tão maestralmente (e ainda o fazem seus
filhos) com nossas aves e plantas. A série de artistas franceses, que visitaram
e viajaram pelo Brasil, na primeira metade do Século XIX, principalmente, a
convite de D. João VI, fez as vezes dos atuais fotógrafos da vida silvestre, registrando
paisagens, plantas e gente, através do desenho e da pintura, sendo esses
trabalhos a única fonte de conhecimento não escrito, que temos sobre os
primórdios de nosso país. Rugendas, Martius e Debret são nomes prontamente lembrados, quando imaginamos a imagem
do Brasil Colonial.
Ilustração de Etienne Demonte representando a
bromélia
Billbergia zebrina, nativa de Petrópolis
Para
não nos determos exclusivamente nas artes visuais, devemos pensar nos relatos
de viagens deixados por esses naturalistas e por alguns outros, como Hercules Florence ou Saint-Hilaire, que escreveram belos
volumes literários sobre incursões pioneiras pelo Brasil. Afinal, literatura é
arte! Desde que se criou a linguagem, criou-se a poesia e a literatura. Então,
não haverá como deixar de ter a arte como ingrediente essencial, fundamental
para o estabelecimento de vínculos de interesse e formação de cultura. E no
cerne da cultura, está a ciência. Tente, então, consultar um texto científico
que não seja revestido de um mínimo senso estético, de ARTE, para ver se
consegue chegar ao fim e realmente tirar proveito dele. Ou melhor, procure
decidir entre a aquisição de um livro sobre nossa flora deslumbrante, tendo à
frente dois volumes: o primeiro contendo fria listagem das plantas existentes
em determinado lugar; e o outro, uma bela iconografia dessas espécies, com
desenhos e fotografias. Qual você escolheria? Qual te levaria a conhecer melhor
a flora?
Retornando
ao momento presente, quando a sociedade pulsa acelerada, frente à imensa
diversidade de modalidades, estilos de arte e mídias, como reencontrar o espaço
da arte, no desenvolvimento científico? Antes de mais nada, não creio realmente
que tenha ocorrido uma suposta ruptura entre as duas. Apenas o homem está
deslumbrado com os avanços tecnológicos. Grande parte dos artistas se envolvem
hoje com as novas ferramentas que lhes permitem rapidez, efeitos e mídias. Mas,
eles ainda são artistas! Quando alguns de meus ícones ou artistas que eu
apreciava se voltaram à tela de um computador, ou para trás de uma câmera
digital, confesso que entristeci bastante. Julgava-os perdidos, embora hoje
perceba que apenas viajaram pelas novas técnicas e que seu olhar continua sendo
artístico. Somente a relação entre arte propriamente dita e ciência é que ainda
sofre um ajuste notável e esse tem sido o foco de minhas reflexões e ações, em
tempos recentes.
Atualmente,
desenvolvo um projeto que originará publicação sobre as vegetações do Brasil,
utilizando ilustrações em bico de pena e lápis, para figurar as paisagens
botânicas do extenso território brasileiro. Em 2015, publiquei meu livro,
intitulado Fitogeografia do Brasil, Uma
Atualização de Bases e Conceitos (NAU Editora), no qual realizei uma
atualização do imenso acervo de pesquisas disponível sobre as vegetações do
país, compilando-o numa só obra e juntando conhecimentos sobre todos os nossos
biomas. Nele, já utilizara a arte, não somente ao adicionar belas fotografias,
obtidas durante anos de expedições pelo país, mas também quando incluí diversos
desenhos esquemáticos que estampavam diversas tipologias de vegetação
existentes. Esses diagramas ajudavam a compreender cada uma delas e eis que
reside exatamente aí a importância do desenho, em detrimento da fotografia.
Exatamente
como afirmava Demonte, o simples ato de desenhar ou pintar uma planta te remete
a uma dimensão que fotografia nenhuma o levaria. Conseguimos lançar olhar
meticuloso, sensibilizando-nos por formas e jeitos da planta (que o Botânico
chama de “hábito”), que acabam montando sua arquitetura singular. É exatamente
essa arquitetura que caracteriza cada espécie, a partir da morfologia única que
compartilha com suas semelhantes. Não é à toa que a arte representa elemento
obrigatório nos trabalhos científicos, quando se publica uma nova espécie e se
lança mão de uma ilustração científica.
No
caso de meu trabalho, que segue na esteira dos naturalistas da Missão Francesa
no Brasil, do Século XIX, período justamente aquele em que mais se avançou no
conhecimento de nossas paisagens naturais, o que muda é tão somente a escala de
percepção, o alcance do olhar lançado ao objeto de nossa contemplação: enquanto
o taxonomista botânico observa sua planta, em escala unitária ou de detalhe, o
desenhista ou gravurista paisagista anota aspectos de uma coleção de plantas e
animais, a interagir com substratos e o meio físico em geral. Deste modo, minha
arte registra as formas do relevo, em diversas escalas (Geomorfologia); tanto
quanto a maneira com a qual as plantas respondem ao meio físico e formam a
vegetação (Fitogeografia).
Durante
uma viagem à Itália, anos atrás, percorrendo paisagens urbanas preciosas, por
conterem os mais importantes capítulos da cultura europeia (e do homem, de modo
geral), percebi certo grupo de turistas apressados e displicentes que
simplesmente passava pelos mais deslumbrantes marcos arquitetônicos e
artísticos da Renascença, disparando rapidamente suas câmeras e seguindo
adiante, sem se deter na contemplação e absorção daquilo tudo. Mais adiante,
encontrei alguns grupos de jovens que, sentados pacientemente diante de belos
monumentos, esboçavam desenhos e pinturas. Estava ali a resposta a todo o
dilema das artes na ciência. Enquanto os turistas superficialistas tiravam suas
fotos, confiando que pudessem se deter, mais tarde, sobre elas, para captar a
grandiosidade daquilo tudo, os jovens artistas vasculhavam minuciosamente cada
percepção, cada sentimento, cada detalhe que os antigos artistas e arquitetos
ali haviam imprimido, com seu trabalho. Não tenho dúvidas hoje: encarando as
duas formas de registro da paisagem italiana, lado a lado, distante dos
cenários originais, teria conhecido melhor sobre eles, antes a partir dos
desenhos e pinturas, que em face de infindáveis fotos tiradas pelos viajantes
sem arte.
Aprendo
mais hoje sobre as vegetações que visitei e estudei, ao desenhá-las, do que
durante os mais de dez anos em que as estudei, através de milhares de papéis e
trabalhos. Alguém disse, certa vez: “quando
termina a vida, só nos resta a arte.”
Ilustração de Orlando Graeff mostrando
vegetação de cerrado stricto sensu,
no Parque Nacional das Emas, em Goiás
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blog da Expedição Fitogeográfica : http://expedicaofitogeografica2012.blogspot.com.br/
instagram orlandograeff
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Texto contundente que, dentre outras coisas, praticamente termina com a aparente dicotomia entre desenho e fotografia
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