SOBRE A ARTE DE DESAPARECER
por
Flávia Hargreaves
fmhartes@gmail.com
Revisão
de conteúdo por Regina Diniz
Desenhos
e fotografia: Flávia Hargreaves.
“Para que a arte apareça, temos que desaparecer.” Nachmanovitch
Tenho
refletido muito sobre a experiência de produzir imagens e de como o processo se
intensifica, quando conseguimos entrar em um estado
de absoluta concentração com o que estamos produzindo, quando o fazer nos
absorve e passamos a um estado de atenção plena, onde consciente e inconsciente
tornam-se uma única força, quando DESAPARECEMOS.
Mas
o que seria desaparecer? Seria quando autor e obra se misturam, se fundem no PROCESSO,
que toma para si toda a cena. Como diz Nachmanovitch, seria quando nos tornamos
o que estamos fazendo. Tenho dito que arteterapia é a terapia do “gerúndio”,
mas esta é uma outra história.
Voltando
a Nachmanovitch:
“[...] Mente e sentidos ficam
por um momento inteiramente presos na experiência. Nada mais existe. Quando
‘desaparecemos’ dessa maneira, tudo à nossa volta se torna uma surpresa, nova e
fresca. O ser e o ambiente se unem. Atenção e intuição se fundem. [...].” (NACHMANOVITCH,
1993, p. 57).
Pensando
sobre este tema, reconheço o lugar privilegiado que ocupo para observá-lo, seja
como autora/artista, professora ou arteterapeuta. Como autora/artista, tenho-me entregue a esta experiência com os meus
desenhos que, no momento, se mostram ser o
material e a linguagem capazes de me absorver por inteiro. Esta prática faz com
que o tempo e o mundo desapareçam, que eu esqueça de mim e ao mesmo tempo me
sinta presente. Reconheci, no meu processo criativo,
a importância do primeiro traço ser espontâneo. Encontrei o lugar da DIVERSÃO
no fazer arte e descobri que o prazer é fundamental para nos levar, de um modo saudável, para este estado mental de
atenção e concentração. Sobre isso, Nachmanovitch
nos diz que: “[...] Esse vivo e vigoroso estado mental [...] tem suas raízes na
brincadeira infantil e floresce numa explosão de plena criatividade.”
Como
professora de artes, observo o comportamento dos alunos ao realizarem um
trabalho plástico. Enquanto alguns conseguem mergulhar no fazer proposto,
outros evitam a entrega e limitam-se a cumprir o
que foi solicitado, o mais rápido possível, a fim de ficarem livres para, por exemplo,
checar as mensagens no celular.
Como
arteterapeuta, tenho experienciado esses
momentos de desaparecer... Nesse caso, não se trata apenas do autor/obra se
misturarem e o processo se impor, mas de o
arteterapeuta desaparecer com o ambiente, pois precisamos assumir uma postura
meditativa de observador. Resumindo, se o processo deu certo, o arteterapeuta
deve desaparecer. Não é tão fácil quanto parece,
mas é um aprendizado necessário.
Outra
questão, com relação ao “processo criativo e o
desaparecer”, com a qual me deparo no meu trabalho,
é o TEMPO, lembrando que estar absorvido pela experiência criativa nos leva ao
seu esquecimento. Sendo assim, como artista,
tenho uma relação com o tempo; como professora e
arteterapeuta, sou intimada a assumir outra. Como intervir no processo e
fazer tudo APARECER DE NOVO? Isso mesmo: “Cortar o barato!” Por compreender e
vivenciar em mim o processo de desaparecimento, como propõe Nachamanovitch –
“para que a arte apareça temos que desparecer” – reconheço minha resistência e
desagrado em assumir este papel, mas ele é inevitável. Procuro por brechas, e
vou interferindo aos poucos, voltando a me tornar presente, visível, esperando
que alguma etapa do trabalho se conclua para que as próximas etapas sejam
retomadas nos próximos encontros. Aos poucos vou aprendendo...
DESAPARECIMENTO
[PROCESSO-DIVERSÃO-TEMPO] REAPARECIMENTO
Flávia
Hargreaves na Oficina “Chiquinha Gonzaga”,
coordenada
por Rosangela Rozante, autora da fotografia.
A
oficina fez parte do evento promovido pela
AARJ
(Associação de Arteterapia do Rio de Janeiro).
Recentemente,
pude vivenciar este corte sutil e bem realizado, por
Rosangela Rozante, na oficina “Chiquinha Gonzaga” (abril, 2017). Em dado
momento da oficina, tudo deixou de existir para mim, mergulhei na minha produção,
esqueci da proposta inicial e entrei em meu próprio processo
de modo intenso. Aos poucos, uma voz suave e calma foi chamando todos os
participantes “de volta” e eu, suavemente, fui
“reaparecendo” junto com o mundo à minha volta.
Pude concluir a imagem e me separar dela, como deve ser, para poder vê-la ao
final. Me senti revigorada com a experiência e esta sensação me acompanhou
durante um bom tempo.
CONCLUINDO
Desaparecer
e reaparecer, misturar e separar, deixar fluir e cortar, esquecer e lembrar, se
colocam diante de mim como operações opostas e complementares. Devemos nos
deixar desaparecer, permitir que o processo criativo seja profundo, fluido,
espontâneo e revelador; e saber o momento de concluir e reaparecer. Esse é um caminho “com volta”, e só faz sentido se assim o for, se, ao final, você estiver de volta, de volta ao mundo, de volta ao
tempo, consciente da experiência que viveu e, quem sabe, revigorado e com novas
perspectivas sobre si e o mundo à sua volta.
Referências:
NACHMANOVITCH,
Stephen. Ser criativo: o poder da improvisação na vida e na arte. 5ª ed.
São Paulo: Summus Editorial, 1993.
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Excelente texto sobre vivenciar esta conexão do artista com sua produção, esta fusão máxima que nos permite "desaparecer" de maneira saudável e retornar à condição anterior, revigoradas, mais plenas. Parabéns, Flávia! Como de costume, estimulando-nos a mergulhar na prática e vivencia pessoal na beleza da Arteterapia. A Arteterapia só fará sentido para meus pacientes se antes fizer sentido na minha experiencia pessoal, se tocar e transformar minha vida! Amei!
ResponderExcluirObrigada Tania. Fico feliz em estimular estes mergulhos que a arte nos proporciona de um modo tão peculiar, uma experiência que considero fundamental para quem leva a arte para a terapia. Bjs.
Excluiro desaparecimento, é como um mergulho ao inconsciente, mas teremos sempre que saber emergir para a realidade.
ResponderExcluirSim, mergulhar e emergir!!!!
ExcluirQuando temos um tema como limite, somos mais criativos. Parabéns pelas reflexões Flavia!
ResponderExcluirQue bom ver vc por aqui Barbato!!! Limite pode estimular a criatividade, embora pareça uma contradição.
ExcluirFlavia, gostei muito do seu texto. De forma simples e concisa, você nos ensina muito sobre o processo de criar. São belas reflexões!
ResponderExcluirObrigada Luiza. Precisamos estudar sobre o processo criativo, mas de nada valerá se não o experimentarmos, então "bora trabalhar!!!" Bjs.
ExcluirComentário enviado por Sônia Guimarães, via e.mail em 05/06/17: "Intenso o seu texto, eu doei grande parte da minha vida a desfrutar deste "desaparecer" através não só da confecção de algo, como também através da leitura e cinema .... Quando, na terapia, passei a desenhar, modelar, participar da obra e não só assisti-la, pude entender este recolher, fluir, voltar. Vivenciei o que vc escreveu! Depois de anos, você me incentiva a imersão no inconsciente, dando maior sentido a minha vida. Obrigada."
ResponderExcluirNo começo estranhei a palavra "DESAPARECER", mas depois fez todo sentido, aquela mergulho no processo criativo onde obra e autor se fundem numa coisa só. Acho que se não desaparecemos não vivenciamos nossa obra com a Alma. Obrigada Flavia. Bjs
ResponderExcluirDESAPARECER é uma palavra forte que pode nos remeter a uma ideia de absoluto e angustiante vazio, mas estou propondo um desaparecer que implica em estar presente. Tema para meditar. Obrigada Gianina por compartilhar suas reflexões.
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