UM PINCEL NA MÃO E UMA IDEIA NA CABEÇA

 por Claudia Bastos




“O que viso é produzir algo de eficaz, é um produzir um estado psíquico, em que meu paciente comece a fazer experiências com seu ser, um ser em que nada mais é definitivo nem irremediavelmente petrificado; é produzir um estado de fluidez, de transformação e de vir a ser.” 

Carl Gustav Jung em “A Prática da Psicoterapia”

 

Uma das coisas mais importantes que o fazer artístico sob a ótica da arteterapia me ensinou foi sobre a relação com imprevistos.

Sempre me considerei uma pessoa relativamente flexível, com facilidade de adaptação e boa capacidade de improviso, conquistada em alguns divertidos anos de aulas de teatro. Mas, as artes plásticas nem sempre imitam os palcos e, toda vez que uma tinta pingava fora do lugar, uma mancha de aquarela saía do meu controle, ou a tinta acabava antes de cobrir o desenho... Pronto. Lá se vai mais uma folha do meu caríssimo bloco Arches ser rebaixada a mero papel de teste de cor.

E para além dos papéis desperdiçados, percebia também o quanto esses erros me paralisavam. Quantas vezes deixei de começar pela quase certeza de que não chegaria lá, onde planejei. Ou até pior, nem conseguia planejar minimamente o que fazer pela dificuldade de aceitar que provavelmente não conseguiria agradar minha tão exigente autocrítica de estimação.

Ontem, depois de algumas semanas de combates com o famoso monstro do bloqueio criativo (cuidado, ele se alimenta de funções excessivamente intelectuais e burocráticas) e de uma batalha perdida que resultou numa aquarela horrorosa, finalmente consegui encarar mais um desafio e arranjei um tempo realmente livre e solitário pra pintar. Com um pincel na mão e uma ideia na cabeça, lá fui eu encarar mais uma folha em branco do meu precioso Arches grano fino.

O processo vinha fluindo bem, a música e a madrugada são amigas fieis. Mas, o cansaço chega devagar, é daquelas visitas que não precisam de convite pra se instalar. Foram longos meses longe das tintas, as mãos também enferrujam depois de tanto tempo sem se exercitar. Não demoraram a aparecer as indesejadas manchas, aquelas que na verdade insistimos em chamar de manchas pra tentar nos consolar, mas não dá pra disfarçar, quando umazinha sai do lugar é só pra ela que a gente consegue olhar. E lá estava ela, sempre bem no meio do desenho, toda exibida, escancarando sua incompetência. Poxa, logo hoje que eu estava indo tão bem. Olhei pra ela. Olhei de novo, mais uma vez. Parei um pouco, dei uma volta na casa. Voltei pra mesa e olhei de novo. E lembrei de uma coisa que caiu em desuso por aqui no último ano, e achei que ela podia me salvar.

E lá fui eu pro banheiro em busca do tão desejado objeto que faria a transmutação do borrão em ouro, da chave para o elixir da vida: um vidro de esmalte. Sim, aquele esmalte vermelho vencido salvaria minha pintura, esconderia meu borrão e de quebra ainda daria aquele toque de intensidade que sempre sinto falta na aquarela. Voilà, minha Heliconia Papagaio acabava de ganhar gotas de sangue escorrido e uma mãe orgulhosa e satisfeita.

Mas os imprevistos não dão trégua e, de repente, uma gota de esmalte escapa do pincel e ganha o papel, bem longe do sangue escorrido, sem dar qualquer chance pro papel toalha tentar salvar. Mas, peraí. Olhei bem, e não é que gostei dela também? E gostei tanto que sacudi o pincel mais algumas vezes. Pronto, fechei. Nunca terminei tão decidida.

Ah não, ainda faltava um imprevisto, uma parte do fundo teimou em sair totalmente do tom, e nem o sangue intenso no meio da folha me deixava parar de olhar. Lembrei da minha velha caixa de retalho, e não é que nela achei um do cinza exato?! Vegetal, lápis, tesoura, ferro de passar, cola pano. Pronto, problema resolvido com louvor. Achei tão bom que quase cobri o fundo todo com ele. Mas não, deixa ele se destacar, vai ficar só lá.

E assim, fomos felizes para sempre, eu e minha aquarela esmaltada e remendada, tão distante daquela um dia desejada, perfeita e impessoal. Essa sim fala de mim, que adoro improvisar, de lua em gêmeos que não me deixa sossegar, que venho admirando tanto a intensidade do sangue que sempre me fez desmaiar. E é exatamente aí que está a magia da arte, da arteterapia. Não é sobre técnica, sobre se aperfeiçoar, sobre ser aplaudida. O verdadeiro artista é na verdade um alquimista, aquele que domina a arte de transformar. Esmalte vira sangue, madrugadas contam histórias, e a vida vai ficando mais verdadeira, e às vezes até mais divertida por isso. Não vejo a hora de algum imprevisto cruzar minha rua mais uma vez.

Ah, quase esqueço da aquarela horrível, aquela da batalha perdida com o monstro do bloqueio criativo. A caixa de retalhos também a salvou do submundo dos papéis de teste de cor e hoje ele habita plena o olimpo da pasta de pinturas.     



Claudia Bastos é formada em Comunicação Social pela PUC Rio e trabalhou por mais de 20 anos em agências de publicidade, empresas, e institutos de pesquisa. A maternidade trouxe, além dos dois filhos, o desejo de mudança nesse rumo profissional, e, através da experiência pessoal com o fazer artístico, encontrou novos caminhos na Arteterapia. Atualmente, concluindo sua formação na área, trabalha com grupos de adolescentes e crianças, e segue os estudos como aluna da pós-graduação em Psicologia Junguiana no IJEP e da graduação em Psicologia na Universidade Santa Úrsula.

 

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