SOBRE A ARTE DE DESAPARECER
por Flávia Hargreaves
Revisão de conteúdo por Regina Diniz
[REPOST - publicado originalmente em 3/5/2017]
Desenhos e fotografia: Flávia Hargreaves.
“Para que a arte apareça, temos que desaparecer.” Nachmanovitch
Tenho refletido muito sobre a experiência de produzir imagens e de como o processo se intensifica, quando conseguimos entrar em um estado de absoluta concentração com o que estamos produzindo, quando o fazer nos absorve e passamos a um estado de atenção plena, onde consciente e inconsciente tornam-se uma única força, quando DESAPARECEMOS.
Mas o que seria desaparecer? Seria quando autor e obra se misturam, se fundem no PROCESSO, que toma para si toda a cena. Como diz Nachmanovitch, seria quando nos tornamos o que estamos fazendo. Tenho dito que arteterapia é a terapia do “gerúndio”, mas esta é uma outra história.
Voltando a Nachmanovitch:
“[...] Mente e sentidos ficam por um momento inteiramente presos na experiência. Nada mais existe. Quando ‘desaparecemos’ dessa maneira, tudo à nossa volta se torna uma surpresa, nova e fresca. O ser e o ambiente se unem. Atenção e intuição se fundem. [...].” (NACHMANOVITCH, 1993, p. 57).
Pensando sobre este tema, reconheço o lugar privilegiado que ocupo para observá-lo, seja como autora/artista, professora ou arteterapeuta. Como autora/artista, tenho-me entregue a esta experiência com os meus desenhos que, no momento, se mostram ser o material e a linguagem capazes de me absorver por inteiro. Esta prática faz com que o tempo e o mundo desapareçam, que eu esqueça de mim e ao mesmo tempo me sinta presente. Reconheci, no meu processo criativo, a importância do primeiro traço ser espontâneo. Encontrei o lugar da DIVERSÃO no fazer arte e descobri que o prazer é fundamental para nos levar, de um modo saudável, para este estado mental de atenção e concentração. Sobre isso, Nachmanovitch nos diz que: “[...] Esse vivo e vigoroso estado mental [...] tem suas raízes na brincadeira infantil e floresce numa explosão de plena criatividade.”
Como professora de artes, observo o comportamento dos alunos ao realizarem um trabalho plástico. Enquanto alguns conseguem mergulhar no fazer proposto, outros evitam a entrega e limitam-se a cumprir o que foi solicitado, o mais rápido possível, a fim de ficarem livres para, por exemplo, checar as mensagens no celular.
Como arteterapeuta, tenho experienciado esses momentos de desaparecer... Nesse caso, não se trata apenas do autor/obra se misturarem e o processo se impor, mas de o arteterapeuta desaparecer com o ambiente, pois precisamos assumir uma postura meditativa de observador. Resumindo, se o processo deu certo, o arteterapeuta deve desaparecer. Não é tão fácil quanto parece, mas é um aprendizado necessário.
Outra questão, com relação ao “processo criativo e o desaparecer”, com a qual me deparo no meu trabalho, é o TEMPO, lembrando que estar absorvido pela experiência criativa nos leva ao seu esquecimento. Sendo assim, como artista, tenho uma relação com o tempo; como professora e arteterapeuta, sou intimada a assumir outra. Como intervir no processo e fazer tudo APARECER DE NOVO? Isso mesmo: “Cortar o barato!” Por compreender e vivenciar em mim o processo de desaparecimento, como propõe Nachamanovitch – “para que a arte apareça temos que desparecer” – reconheço minha resistência e desagrado em assumir este papel, mas ele é inevitável. Procuro por brechas, e vou interferindo aos poucos, voltando a me tornar presente, visível, esperando que alguma etapa do trabalho se conclua para que as próximas etapas sejam retomadas nos próximos encontros. Aos poucos vou aprendendo...
DESAPARECIMENTO [PROCESSO-DIVERSÃO-TEMPO] REAPARECIMENTO
Flávia Hargreaves na Oficina “Chiquinha Gonzaga”,
coordenada por Rosangela Rozante, autora da fotografia.
A oficina fez parte do evento promovido pela
AARJ (Associação de Arteterapia do Rio de Janeiro).
Recentemente, pude vivenciar este corte sutil e bem realizado, por Rosangela Rozante, na oficina “Chiquinha Gonzaga” (abril, 2017). Em dado momento da oficina, tudo deixou de existir para mim, mergulhei na minha produção, esqueci da proposta inicial e entrei em meu próprio processo de modo intenso. Aos poucos, uma voz suave e calma foi chamando todos os participantes “de volta” e eu, suavemente, fui “reaparecendo” junto com o mundo à minha volta. Pude concluir a imagem e me separar dela, como deve ser, para poder vê-la ao final. Me senti revigorada com a experiência e esta sensação me acompanhou durante um bom tempo.
CONCLUINDO
Desaparecer e reaparecer, misturar e separar, deixar fluir e cortar, esquecer e lembrar, se colocam diante de mim como operações opostas e complementares. Devemos nos deixar desaparecer, permitir que o processo criativo seja profundo, fluido, espontâneo e revelador; e saber o momento de concluir e reaparecer. Esse é um caminho “com volta”, e só faz sentido se assim o for, se, ao final, você estiver de volta, de volta ao mundo, de volta ao tempo, consciente da experiência que viveu e, quem sabe, revigorado e com novas perspectivas sobre si e o mundo à sua volta.
Referências:
NACHMANOVITCH, Stephen. Ser criativo: o poder da improvisação na vida e na arte. 5ª ed. São Paulo: Summus Editorial, 1993.
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